Colocou o telefone no gancho levemente
aturdida com a notícia da chegada de Cecília e seus dois filhos a Brasília em menos
de uma semana. Aquele fora um telefonema
inesperado vindo de uma amiga paulistana com quem não falava há pelo menos
treze anos. No início, quando saíra de São Paulo para morar em Brasília, ainda trocavam
telefonemas, cartas, cartões-postais. Certa
vez, quando fora participar de um seminário bancário em São Paulo, Cecília a convidara
para jantar no amplo apartamento que dividia com o marido e as duas crianças no
bairro do Morumbi, muito bem postado no vigésimo piso, o mais alto do prédio. Casara com um engenheiro que era ao mesmo tempo professor, administrador e
proprietário de um curso de preparação para o vestibular, de notório sucesso no
meio estudantil. Tinha de particular
a pretensão de se tornar senador da república. Era o que Juliana lembrava daquela noite,
alternado com o abraço caloroso de Cecília, a memória da bela foto da festa de casamento no
móvel baixo do hall de entrada, e o
brilho irregular das luzes da cidades
penetrando na sala de jantar através das amplas vidraças descortinadas.
Foram se afastando por inércia
mútua até o esfriamento, o contato minguado do feliz ano novo ou aniversários.
Há pouco, no telefone, a voz de Cecília adquirira
um desconcertante tom de mistério e opacidade dando margem à soltura da imaginação. Explicaria tudo quando chegasse à Brasília, prometera Cecília. Nenhuma
fantasia engendrada pela mente de Juliana foi tão surpreendente quanto os fatos
que efetivamente tiveram lugar na vida de Cecília nos últimos dias. Depois de doze anos de casamento com o
professor candidato a senador, ela descobrira por acaso que ele tinha outra
mulher, com quem estava legalmente casado e tivera um trio de filhos, todos
morando na mesma cidade de São Paulo. O trabalho de engenheiro de obras rodoviárias
o levava com regularidade para fora da cidade: o álibi ideal. Precisava viajar para trabalhar e assim
conseguia conviver com as duas famílias, sem muito atropelo. Um bígamo,
portador de documentos falsificados, duas certidões de casamento emitidas por
cartórios diferentes. O acaso foi
cúmplice da revelação dolorosa: Cecília e o professor queriam vender o
apartamento para comprar uma casa no mesmo bairro. Acabaram desistindo, por
isto Cecília ficou boquiaberta quando um corretor imobiliário lhe telefonou
para pedir-lhe que enviasse os documentos necessários para a assinatura da
escritura da tal casa. Na realidade, o
professor acabou comprando a casa para morar com a outra esposa e os outros
filhos. Tivera o cinismo de levar ambas
para ver o mesmo imóvel. Quem se atrapalhou, foi o vendedor.
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tela de edward hopper |
A vingança de Cecília foi
engenhosa. Não falou nada em casa. Quando o engenheiro saiu para trabalhar ela
deu partida ao plano de escape que planejara cuidadosamente. Veio o caminhão da
companhia de mudanças e levou tudo, absolutamente tudo da moradia, até mesmo as
luminárias, os espelhos e os interruptores de luz das paredes – os fios para energia e telefone foram
deixados à mostra, como em construção inacabada. Imagine a cara do futuro senador ao chegar em
casa naquela noite. Abriu a porta e deu de cara com o vazio. Ela comprou as passagens para Brasília na
surdina, fez as malas com bastante roupa
e o restante foi para o depósito, junto com a mobília. Em prédio que só tem um apartamento por andar
o nível de vigilância da vizinhança é mínimo – nem os porteiros se deram conta
da fuga da mulher do vigésimo. O marido,
desesperado, chamou a polícia. O caso levou uns dias para ser resolvido: a
polícia acabou chegando à casa de Juliana no Distrito Federal.
Quando isso aconteceu, Cecília já
tomara outro avião.
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fotografia Édouard Boubad |