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"Inventário do envelhecimento
"Inventário do envelhecimento
A
conversa era sobre preconceitos e minha amiga, 17 anos mais moça que eu, saiu
com essa: “....Até velhas de olhos verdes como você são vítimas de
preconceito”. Como assim, basicamente? Preconceito porque sou velha? Ou porque
tenho olhos verdes? Ou porque, apesar dos olhos verdes, sou velha?
Não
entendi a relação, mas como a palavra “velha” dói feito um preconceito em quem
já passou da primeira metade da vida (considerando que a primeira metade
termina aos 50, não mais aos 40, como antigamente), passei uma noite em claro. De
manhã, considerei que toda aquela cara amassada diante do espelho era resultado
da insônia.
Fui para a aula de Yoga e, tirando uma dificuldade aqui, outra ali, estava tão flexível e leve quanto as garotas de vinte ao meu lado. Aliás, aquele gatinho de vinte e cinco, no máximo, estava tão travado que, perto dele, eu era uma bailarina chinesa. Perscrutei minha alma durante o alongamento, e não encontrei nenhuma ruga. Meu coração, também, estava intacto, cheio de boas emoções.
Fui para a aula de Yoga e, tirando uma dificuldade aqui, outra ali, estava tão flexível e leve quanto as garotas de vinte ao meu lado. Aliás, aquele gatinho de vinte e cinco, no máximo, estava tão travado que, perto dele, eu era uma bailarina chinesa. Perscrutei minha alma durante o alongamento, e não encontrei nenhuma ruga. Meu coração, também, estava intacto, cheio de boas emoções.
Então voltei para casa, num indescritível estado
de serenidade, e olhei novamente no espelho. A cara continuava amassada.
Peguei a câmera fotográfica, virei a tela lateral para o meu lado, e tentei
fazer uma foto três por quatro, para ver como as pessoas estavam me vendo.
Sim, havia uma velha brotando naquela boca sem mais contornos, naquele perfil
onde o nariz arrebitado começava a cair.
Os olhos, sim, continuavam verdes, mas nem as
duas cirurgias de pálpebras que eu havia feito, uma aos 45, outra aos 55, davam
jeito na lateral que despencava, formando um sulco profundo. As sombrancelhas,
já redesenhadas com henna por causa dos pelos escassos, estavam mais para
ridículas do que para bonitas. Entre elas, uma ruga de expressão que vinha
desde o berço me dava ares não mais de brava, mas de contrariada, cansada,
quase triste até.
Isso me deixou intrigada, porque aquela expressão
contradizia minha paz interna, minha disposição de viver, minha alegria e bom
humor. Estranho, muito estranho...teriam os cirurgiões mudado meu olhar, ou
estaria meu olhar antecipando uma tristeza que eu ainda não sentia? Abri
um sorriso de orelha a orelha para ver se a expressão melhorava. Pareceu o
Roberto Carlos rindo. Lábios finos e rasgados, mostrando apenas a ponta dos
dentes, também esses, tenho que confessar, já mexidos e remexidos por dezenas
de dentistas.
A imagem que eu tenho de mim é a da carteira de
identidade. Uma carinha lisa e suave de 30 anos de idade. “Em que espelho ficou
perdida a minha face?” declamei. Estaria Cecília Meireles beirando os 60 quando
escreveu “Retrato”? Faço as contas: se ela morreu aos 63, tinha apenas
cinco anos a mais do que tenho hoje. E, no entanto, me sinto tão jovem...tão
saudável... morreria feliz aos 63? Ou daqui a pouco, quando for remar? Está
pronta a minha vida, posso apagar a luz e dizer adeus?
“Ainda é cedo amor, mal começastes a
conhecer a vida”, cantarolo enquanto caminho para a praia, onde encontro os
amigos do clube do SUP (Stand Up Padle). Levanto sozinha a prancha de uns 20
quilos, mais de dois metros de comprimento, quase um metro de largura no meio,
e atravesso a rua com cuidado, olhando para a direita e para a esquerda, para
evitar acidentes. Pareço uma formiguinha carregando uma folha de mangueira.
Pouso a folha na praia, no lugar aonde a onda
quebra, e levanto a perna esquerda para colocar o “leash”, a corda que me
mantém ligada à prancha enquanto navego. Gosto da minha perna, reflito. Gosto
muito mesmo. Já foram mais bonitas e torneadas, mas continuam fortes, sem
varizes ou dores. Já que o dia é de inventário do envelhecimento, apalpo também
as panturrilhas, definidas e duras. Sim, boas pernas, constato satisfeita.
Ainda me levam longe.
![]() |
Márcia no stand up |
Ajoelho sobre a prancha até atravessar as
primeiras ondas e me levanto. De uma vez só, trazendo junto o remo. Acerto a
postura, a postura firme da montanha, barriga e glúteo para dentro, coxas
tesas, joelhos semi-dobrados. Remo duas vezes de cada lado, remadas lentas e
longas, acompanhadas de uma virada completa do corpo. Aproveito o
movimento para examinar as celulites. Felizmente o estrago é menor do que o que
vejo nas mocinhas criadas a coca-cola e MaCDonald.
Entôo o hino de Paulino da Viola: “Não sou
eu quem me navega, quem me navega é o mar”, focada na ilha à minha frente.
Quando chego aonde quero chegar, onde as águas são mais limpas, frias e
profundas, mergulho. O mar me abraça inteira, com seus braços verdes, quentes e
salgados. Impossível não ser feliz. Se eu morresse agora, seria uma morte
boa e serena. Não deixaria nada para trás, morreria em completa harmonia com as
naturezas, a minha e a que me circunda. Num estado de paz pelo qual batalhei
muito. E no qual finalmente me encontro.
visão da praia durante a ásana sarvangasana |
Morrer agora seria mais digno? Quando eu
mais desfruto da vida? Nada disso, querida jovem amiga. Quero disso muito mais.
E isso significa envelhecer. Então vale a pena. Porque é somente quando
nos destituímos dos cargos conquistados, nos demitimos dos nossos trabalhos,
dos bens inúteis, dos excessos todos, é que encontramos a paz. Se o preço são
essas rugas, essa pele um pouco flácida, algumas manchas nas mãos e essa cara
que não combina em nada com a minha alma, pago com gosto.
Quem tiver preconceito que morra cedo. Na
terrível idade entre o pavor de envelhecer e o desespero de ser jovem."