Quando abri a caixa de entrada hoje achei um presente de Sonia Bonzi, uma amiga que atualmente reside em Túnis. Esposa de diplomata (um embaixador) ela de vez em quando nos brinda com um relato sobre a movimentada trajetória de quem já morou em cada esquina do mundo. Desta feita, são memórias vívidas dos anos passados em Viena.
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Viena, a capital musical da Europa (foto internet) |
"Muitas
vezes, para matar as horas, sento-me nos bancos da Catedral de Santo
Estevão, medieval, magnífica, cheia de glórias e fuligem dos séculos.
Ali passo em revista as imagens dos santos, o que sobrou dos vitrais.
Envolvo-me na luz fosca das velas, deixo o som do órgão reverberar em
minh’alma e, mesmo sem fé, rezo. Peço sabedoria para enfrentar os
desafios da nova vida.
Caminho pelas ruas, admiro a graça das fontes, o romântico das ruelas, o charme dos prédios, a limpeza das ruas, a educação dos
motoristas, a obediência dos pedestres...

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Roy Lichtenstein |
Outro
dia, ao voltar da aula de alemão, assisti a uma cena traumática, que me
fez perder o desejo de sair de casa,
de apreciar as belezas da cidade. O bonde estava cheio. Um casal de
iugoslavos discutia em servo-croata. Falavam em voz alta. Parecia briga
de marido e mulher. Depois de alguns minutos, o homem, muito irritado,
fez estalar um tapa no rosto da companheira. Os passageiros, já
incomodados com a discussão, começaram a aplaudir, entusiasticamente.
Quando o bonde parou, o casal desceu desconcertado. Desci atrás deles,
apesar de estar ainda longe do meu prédio. Caminhei pelas ruas, atônita.
Jamais vira coisa semelhante. A manifestação da massa me foi mais
inaceitável do que a reação do homem, e eu tive medo de continuar a
dividir o mesmo espaço com aquelas pessoas, as mesmas que no final de
concertos magníficos só eram capazes de uma ovação contida.
Caminhei umas seis quadras e baixinho cantei:
“Eu quero ir minha gente,
Eu não sou daqui
Eu não tenho
nada...”
Chegar
em casa foi um prazer. Tirei os sapatos, joguei os livros sobre a mesa e
deixei meu corpo tombar sobre a grande espuma, que servia de sofá na
sala. A cena do bonde me torturava. Um misto de medo e ódio era o que eu
sentia.
O
povo que ovacionou Hitler ainda ofende os
trabalhadores braçais vindos dos países do Sul da Europa, em especial,
da Iugoslávia. Chamam-lhes “iuques”, com desprezo e desrespeito. Meu
marido, com seus cabelos negros, se usa terno e gravata, é bem tratado.
Vestido com jeans e camiseta é olhado com suspeita. Pode ser um
iugoslavo, um italiano do sul, um grego...
A
brancura de minha pele, que sempre me incomodou, é, em Viena, um
escudo. Por ela não sou muito discriminada. Um nobre, de estirpe local,
me aconselhou a esconder minha origem mestiça. Disse que eu podia passar
por europeia. Logo eu, que me orgulho tanto desta mescla de
preto-índio-português-espanhol-italiano-judeu...
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os Fachinis e amigos no deserto da Tunísia (foto de Sonia Bonzi) |
Ao pôr os pés fora da porta do apartamento sinto medo. Fico esperando por alguma repreensão e me preparo para brigar.
Em
minhas saídas descobri, com surpresa, curiosidades da cultura local.
Fazem compras para as necessidades de cada dia: um bife pequeno, uma
batata, um tomate... Nada de estocar, comprar para a semana, para o
mês...
Os
velhos moram e morrem sozinhos. Os filhos, com muita antecedência,
pedem permissão para fazer uma visita no dia de Natal. Muitos
restaurantes não aceitam crianças, mas têm vasilhinhas de aço inox para
os cães bem educados, que vêm com seus donos. Há um horror a crianças.
Mulheres grávidas quase não se vêem. Muitos prédios não alugam
apartamentos para casais com filhos.
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David Hockney |
Voltando
um dia para casa, cheia de sacolas, sentei-me no bonde. Na parada
seguinte entrou uma senhora com uma bengala na mão. Começo a juntar
minhas compras para ceder-lhe o lugar. Antes que eu tivesse tempo de me
levantar, levei uma bengalada na canela e ouvi um grunhido acusatório.
Perdi o juízo. Depositei meus pertences no chão e, atrevidamente, disse
para a velha senhora que eu não ia mais lhe dar meu lugar, que ela
deveria já ter morrido há muito tempo, que fosse para o inferno.
Outra vez desci antes do ponto. Meu desejo era o de tomar a bengala da anciã e dar-lhe boas cacetadas.
Tanta agressividade dentro de mim me faz mal. Optei por hibernar. Ser filha única me ensinou a estar só.
... “Eu não sou
daqui”...
Viena
pouco corresponde às minhas fantasias. Muito mais sapo do que príncipe.
Em vez de Sissi e Franz Josef encontro nobres trabalhando. Uma princesa
vende sapatos e bolsas em uma lojinha no Lugeck. A realeza falida vai
aos coquetéis nas embaixadas para comer e beber de graça. Um conde me
contou que vive em apartamento pequeno por não ter como manter seu
castelo. Tudo tão decadente!...
As
noites terminam às dez, no máximo, às onze horas. Um programa é ir ao
parque de diversões Prater. Música animada, muita cerveja, vinho quente e
alguma vida. As pessoas comem pipoca, algodão doce, maçã do amor,
castanhas... Turistas e imigrantes são maioria. Há mais descontração.
Uma imensa roda-gigante tem vagões de bonde em vez de cadeiras. Dela
vê-se quase toda a cidade, o brilho das torres douradas, os contornos do
rio e das montanhas.
Eu gosto dos cenários.
Minhas dificuldades são com o elenco e a platéia."
Viena,
1974
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outra crônica de Sonia Bonzi pode ser encontrada aqui
outra crônica de Sonia Bonzi pode ser encontrada aqui
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