Dias atrás, meu marido e eu recebemos a visita de uma família amiga de longa data: homem, mulher, filha. Pessoas que passam a vida em deslocamentos constantes, às vezes para lugares longínquos como a Austrália ou a África do Sul, conforme o charme que a profissão de diplomata oferece. Quem nunca se imaginou percorrendo o mundo inteiro, de modo aventureiro? Na juventude, desejei ser aeromoça, na maturidade quis ser mulher de camionheiro, rodando, rodando...Mudar de endereço é um tipo de aventura, até de bairro. Principalmente, no primeiro estágio: a adaptação aos costumes locais, à geografia, às novas pessoas... Por coincidência, vivo esta experiência no presente: quase um ano após a vinda para Paraty ainda me sinto turista na cidade, na montanha e na praia.
Passo a palavra à Sonia Bonzi que procura traduzir com sentimento uma parte da vivência dela em Viena, durante a década de 70, ao lado do marido, quando ainda não tinham os três filhos e ele mal iniciara a carreira diplomática.
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"Acendo as
luzes pouco antes das três horas da tarde. Não faz muito que saí da cama. Lá
fora o frio assusta e o vento desarmoniza o desenho geométrico dos telhados. Um
pouco de neve ainda se vê. Minhas janelas, que se abrem para o céu, estão
embaçadas. Por alguma fresta no telhado, um sopro de vento se assemelha ao uivar
de lobos.
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fotografia de Roberto David de Sanson Neto |
A
paisagem não tem foco. Procuro a beleza na névoa que abraça e sufoca o dia.
Encontro-a, admiro-a, momentaneamente, mas desejo o brilho do sol tropical, o
escandaloso das cores.
Nem eu sei que sensação é esta que me faz sentir tão fora de lugar. Tudo muito
exótico.
Penso em
Jorge Mautner e seu descrever da angústia. Acho que define meu momento. Um
desejo de encolher, desaparecer, cair em outro lugar.
Careço do
colo da mãe, que tão nova se foi. Desejo o abraço do pai, o lugar conhecido, o
pé descalço na terra, a legião de amigos, o pôr do sol do cerrado, os morros de
Minas...
Necessito
de luz que me alimente os ossos e reanime os músculos. O corpo pesa. Não mais
que a cabeça.
A posição
horizontal é a única que me convém. O grande colchão de espuma, cheio de
almofadas, é o melhor que posso ter.
O ar
dentro de casa é seco. A calefação é um objeto estranho.
Não tenho
desejo nem de sentir ódio da vizinha que perturba minha vida. Nenhuma vontade.
Só este expirar angustiado.
O amanhã
parece que não vai chegar e este dia-noite se prolongará eternamente.
Acendo
muitas velas. Espalho-as pelo chão, sobre os tacos de madeira, miúdos e
encerados. Deitada, contemplo-as. O olhar mergulha na luz. A realidade se
esvai.
As horas
passam preguiçosas. Fumo um cigarro, outro e mais outros.
“Este
papo seu tá qualquer coisa, você já está pra lá de Marrakech. Mexe qualquer
coisa dentro doida, já qualquer coisa doida dentro mexe”.
Caetano
canta. O sax chora. “Esse papo meu tá qualquer coisa e você já tá pra lá de
Teerã”.
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(Dá licença para um parênteses, impossível reprimir o comentário... àquelas alturas, Soninha nem imaginava que muitos anos depois iria viver em Teerã na condição de embaixatriz brasileira no país. Fotógrafa de lente cheia, fez belos registros do Irã, repare acima)
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A lua não
se deixará ver. Como suportar a angústia de uma noite sem estrelas? Talvez elas
me tirassem deste torpor.
Alguma coisa
me diz que assim não posso continuar. Não me reconheço. As pessoas, na rua, no
bonde, nas lojas, nos parques, nos museus me despertam os piores sentimentos.
O estudo
de alemão perdeu o encanto.
Preciso
sair deste estado de espírito.
É tempo
de rever, reavaliar.
Tenho que
aprender a entender os humanos do mundo em que agora vivo.
Nada de
comparações.
Aceitação,
resignação.
Busca do
bom.
Como
fugir do desânimo, que fazer com a raiva que explode? Como negar que desejo a
morte dos velhos que não aprenderam com o sofrimento? Onde esconder o desprezo
que sinto pela nobreza? Como fechar a boca para não xingar ou cuspir?
A água
que sai da torneira é um bálsamo. Gelada, direto do degelo das montanhas para
os canos. Ela espanta o sono quando lavo o rosto ao acordar, nem sempre de
manhã. Sem a luz do sol nascente, não faço caso de horas. Não há muita
distinção entre o nascer e o morrer do dia.
A cortina
do banheiro tem o desenho de uma teia de aranha. “A ciência da abelha, da
aranha e a minha todo mundo desconhece”.
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"Luz teimosa" (fotografia de Fernando Lemos) |
O barulho
da chave na fechadura tem o poder de espantar meu sofrer. Ele anuncia a chegada
de quem aqui me mantém. Ele traz consigo sua luz. Ilumina a mim e a casa. Ele
tem o poder de salpicar estrelas no meu céu, fazer o sol brilhar, a lua
nascer...
“...E a gente dança venerando a noite...”
“Gosto
muito de você, Leãozinho...
Pra
desentristecer o meu coraçao tão só...
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