Tenho uma amiga que é "especialista em vida cigana na empresa de Luiz Fachini Gomes" -- eis o modo jocoso que ela encontrou para definir o lado profissional de mulher de diplomata. Sonia Bonzi, a Soninha, como é amplamente conhecida. Creio que o diminutivo perdura há décadas devido à pegada jovial desta mulher que percorreu o mundo inteiro. Hoje o casal vive em Túnis - o marido na função de embaixador do Brasil na Tunísia e a esposa nas tarefas de embaixatriz. Soninha ainda tem fôlego para ser mãe, avó, fotógrafa e bordadeira - tanto no sentido literal, de prendas artesãs, como no de alinhavar palavras e memórias.
Achei aqui o primeiro capítulo de suas reminiscências, ainda na época do namoro com o futuro diplomata mineiro.
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"Quando debaixo da minha janela ele cantava “Minha Namorada”, de Vinícius, eu
não imaginava qual poderia ser a tristeza do caminho que ele me
convidava a percorrer. Fui, lentamente, descobrindo.
Sair
de Minas, deixar para trás meus pais, amigos, alunos, o gato angorá,
tirou-me do prumo. A viagem de ônibus parecia interminável. Depois de
Sete Lagoas a paisagem machucou meus olhos e tive a impressão de que
Deus estava sem inspiração quando criou aquelas árvores secas e
retorcidas, onde não se viam pássaros, nem qualquer outro tipo de
animais. Tudo triste.
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Brasília - fotografia de Usha Velasco |
E como era longe a capital. As estradas batiam no horizonte e davam a impressão de serem infinitas. Numa
manhã de céu muito azul, chegamos. Fui, pela primeira vez, viver longe
do chão. Penduramo-nos no segundo andar de um bloco recém construído, já
cheio de rachaduras nas paredes e chão que arrebentava em bolhas.
Olhar
pela janela, ver a terra vermelha, seca, de onde as árvores brotavam
sem vontade, me enchia de saudades dos morros e do verde de Minas.
Fui aos poucos me acostumando com a nova vida. Arrumei um emprego, conheci gente nova, fiz amigos, comecei a entender o significado da música que meu amor cantava debaixo da janela.
Minha origem humilde havia me privado de muitas coisas. Não tive acesso à intelectualidade. Meu diploma de normalista era o único que eu tinha para mostrar. Não conhecia os
clássicos, não falava outras línguas, não sabia nada sobre política.
Sabia outras coisas: alfabetizar, bordar, fazer crochê,..
Passei a filar cultura, meti-me num curso
de inglês, aprendi algumas regras do jogo da vida diplomática. Muitas
vezes senti enjoo nas reuniões, assustei-me com as casas cheias de
objetos de prata, paredes recobertas de quadros, estante abarrotadas de
livros.
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o casal com os três filhos em algum lugar do passado |
Foi
entre os diplomatas que conheci muitos dos meus melhores amigos. Todos
muito cultos, finos e generosos. Fui aceita e respeitada, apesar das
minhas limitações. Jamais neguei minhas origens e fazia meus amigos
rirem contando os casos do interior, as histórias da minha família, as
piadas apimentadas que ouvia do meu pai.
Três
anos passaram rápidos. Chegou a hora de arrancar as ainda frágeis
raízes, que começavam a se firmar no cerrado, que eu aprendi a amar.
Deixar o Brasil, despedir dos meus pais, abandonar o conhecido e me
lançar em um outro desafio não foi fácil. Derramei litros de lágrimas.
Em Viena, tomei mais consciência do que realmente me esperava nesta vida de acompanhante de diplomata, sem tempo
para enraizar. Caminho de mudanças, instalações, adaptações e submissão
às novidades. O Embaixador, Chefe do Cerimonial do Itamaraty, dizia que
cinquenta por cento da carreira dos maridos dependia das mulheres.
Poderia assumir tanta responsabilidade?
Eram
tantas as perguntas que eu me fazia. A cabeça não parava e eu duvidava
de minha capacidade de ser a “amiga e companheira”, de sobreviver às idiossincrasias do caminho.
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residência do embaixador brasileiro em Túnis (foto de Soninha) |
Logo
na chegada a Viena, fomos recebidos, muito carinhosamente, por
funcionários da embaixada. Sem eles, que se tornaram nossos amigos
queridos, a vida teria sido insuportável.
Um
jantar muito formal nos foi oferecido na residência do Embaixador.
Parecia que, entre as intenções do chefe e de sua esposa, estava a de
avaliar o desempenho de seus subalternos recém chegados, no caso, nós.
Fui
atrás de informações de como me vestir, relembrei as regras de etiqueta
que me ensinaram, repassei na cabeça a posição dos talheres, dos copos…
Mandamos para a embaixatriz um número ímpar de flores, conforme as
normas do protocolo. Determinei que falaria pouco, não usaria “porra”,
nem “pô”, como se fossem vírgulas. Não soltaria nenhuma gargalhada.
Piada não contaria.
A
dona da casa recebeu-nos com um olhar que nos despiu. Meu marido não
lhe beijou a mão como ela esperava. Minha espontaneidade esvaiu-se,
minhas mãos suavam. O sangue ferveu e afogueou meu rosto. A voz ficou
pequena e uma timidez desconhecida me fez encolher os ombros.
Meus
olhos buscaram refúgio na suntuosidade dos salões, nos móveis de época,
enfeitados de dourado e forrados de brocados “bordeaux”. Depois vagaram
pelos quadros pendurados nas paredes e pelas vitrines de cristal
bisotado, repletas de obras de arte e preciosidades…
As mãos suadas, o maxilar trincado…
Tudo muito diferente!…
Sobre
a mesa de jantar muitas flores, candelabros e velas, sal e pimenta em
cestinhas de prata, “sous-plats”, cinzeirinhos individuais, cartões com
os nomes dos comensais, cardápio escrito à mão, lavandas, objetos de
porcelana, todos os tipos de pratos, pratinhos, taças e talheres.
Os
garçons serviam à francesa. Eu à direita do anfitrião. Temia fazer o
garçon derrubar a travessa, deixar os talheres caírem, perder a carne no
caminho até o prato… Reprimia os gestos com medo de quebrar o copo de
vinho branco, ou pior, o de vinho tinto e manchar a toalha de linho
bordada. Não sabia se cruzava as pernas, se me encostava no espaldar, se
descansava o braço na mesa, se saia correndo…
Tudo muito formal, muito distinto do que me era conhecido.
Lembrei-me
da mesa da casa dos meus pais. Um prato, um garfo e uma faca para cada
um. Sempre virados para baixo a fim de evitar pouso de mosca e poeira.
Fui a primeira a ser servida.
Peguei
um pãozinho e logo me arrependi. Não sabia em qual dos pratinhos
depositá-lo. Passar recibo de que não sabia nem onde pôr o pão eu não
queria. Mantive o pãozinho entre os dedos. Continuei a conversa com o
embaixador, muito elegantemente vestido. Gesticulei comedidamente. O
pãozinho na mão.
Quando minha amiga, mais fina e experiente, não titubeou ao escolher o pratinho, imitei-a. Grande alívio!…
A comida chegou fria e eu me permiti achar pouco fino.
Lá em casa a comida era servida quentinha, soltando fumaça, cheirosa.
Um
copo de vinho branco, outro de vinho tinto e já estava mais à vontade.
Ouvi mais do que falei, mas não fiquei muda. Contei até caso. O
Embaixador foi receptivo com minha juventude. Riu, brincou.
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Soninha, na minha imaginação |
O café tomado na outra sala foi mais constrangedor. Tive que ficar perto da embaixatriz, que, depois de falar de sua origem quase nobre, quis saber o sobrenome da minha família. Foi difícil segurar o riso. Como ela poderia conhecer meus antepassados, imigrantes italianos no Espírito Santo, colonos em lavoura de café, donos de venda?
Meu olhar passeava pela escadaria imponente, que descia em curva até o “hall” de entrada.
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"Técnicas para festas" - desenho de Saul Steinberg |
Não combinava comigo aquele constrangimento cerimonioso. Onde estava a moça animada, alegre e falante lá de Minas? Anjos passavam levando a conversa. Eu não tinha o que dizer quando a embaixatriz falava de porcelanas, pratas, baixelas… Menos ainda quando contava de seus encontros com gente da altíssima, dos casamentos pomposos ou divórcios reais… A empolgação da embaixatriz com a aristocracia me deixava perplexa. Eu não conhecia rei, rainha, príncipe, conde ou duquesa. Nem os nomes dos burgueses notáveis eu sabia. Desconhecia a genealogia dos Habsburg, nunca tinha ido à Grécia, nem sequer tinha visto um iate de perto…
Voltei
para casa desconsolada, descrente do meu sucesso como mulher de
diplomata, sem nenhum entusiasmo com o caminho que começava a percorrer.