quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Viver em Viena


Dias atrás, meu marido e eu recebemos a visita de uma família amiga de longa data: homem, mulher, filha. Pessoas que passam a vida em deslocamentos constantes, às vezes para lugares longínquos como a Austrália ou a África do Sul, conforme o charme que a profissão de diplomata oferece. Quem nunca se imaginou percorrendo o mundo inteiro, de modo aventureiro? Na juventude, desejei ser aeromoça, na maturidade quis ser mulher de camionheiro, rodando, rodando...Mudar de endereço é um tipo de aventura, até de bairro. Principalmente, no primeiro estágio: a adaptação aos costumes locais, à geografia, às novas pessoas... Por coincidência, vivo esta experiência no presente: quase um ano após a vinda para Paraty ainda me sinto turista na cidade, na montanha e na praia.
Passo a palavra à Sonia Bonzi que procura traduzir com sentimento  uma parte da vivência dela em Viena, durante a década de 70, ao lado do marido, quando ainda não tinham os três filhos e ele mal iniciara a carreira diplomática.

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"Acendo as luzes pouco antes das três horas da tarde. Não faz muito que saí da cama. Lá fora o frio assusta e o vento desarmoniza o desenho geométrico dos telhados. Um pouco de neve ainda se vê. Minhas janelas, que se abrem para o céu, estão embaçadas. Por alguma fresta no telhado, um sopro de vento se assemelha ao uivar de lobos.

fotografia de Roberto David de Sanson Neto
A paisagem não tem foco. Procuro a beleza na névoa que abraça e sufoca o dia. Encontro-a, admiro-a, momentaneamente, mas desejo o brilho do sol tropical, o escandaloso das cores. Nem eu sei que sensação é esta que me faz sentir tão fora de lugar. Tudo muito exótico. 

Penso em Jorge Mautner e seu descrever da angústia. Acho que define meu momento. Um desejo de encolher, desaparecer, cair em outro lugar. 

Careço do colo da mãe, que tão nova se foi. Desejo o abraço do pai, o lugar conhecido, o pé descalço na terra, a legião de amigos, o pôr do sol do cerrado, os morros de Minas... 

Necessito de luz que me alimente os ossos e reanime os músculos. O corpo pesa. Não mais que a cabeça. 

A posição horizontal é a única que me convém. O grande colchão de espuma, cheio de almofadas, é o melhor que posso ter. 

O ar dentro de casa é seco. A calefação é um objeto estranho.

Não tenho desejo nem de sentir ódio da vizinha que perturba minha vida. Nenhuma vontade. Só este expirar angustiado. 

O amanhã parece que não vai chegar e este dia-noite se prolongará eternamente. 

Acendo muitas velas. Espalho-as pelo chão, sobre os tacos de madeira, miúdos e encerados. Deitada, contemplo-as. O olhar mergulha na luz. A realidade se esvai.  

As horas passam preguiçosas. Fumo um cigarro, outro e mais outros.

“Este papo seu tá qualquer coisa, você já está pra lá de Marrakech. Mexe qualquer coisa dentro doida, já qualquer coisa doida dentro mexe”.

Caetano canta. O sax chora. “Esse papo meu tá qualquer coisa e você já tá pra lá de Teerã”.
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(Dá licença para um parênteses, impossível reprimir o comentário... àquelas alturas, Soninha nem imaginava que muitos anos depois iria viver em Teerã na condição de embaixatriz brasileira no país. Fotógrafa de lente cheia,  fez belos registros do Irã, repare acima)
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A lua não se deixará ver. Como suportar a angústia de uma noite sem estrelas? Talvez elas me tirassem deste torpor. 
Alguma coisa me diz que assim não posso continuar. Não me reconheço. As pessoas, na rua, no bonde, nas lojas, nos parques, nos museus me despertam os piores sentimentos.

O estudo de alemão perdeu o encanto.

Preciso sair deste estado de espírito. 

É tempo de rever, reavaliar.

Tenho que aprender a entender os humanos do mundo em que agora vivo.

Nada de comparações. 

Aceitação, resignação. 

Busca do bom.

Como fugir do desânimo, que fazer com a raiva que explode? Como negar que desejo a morte dos velhos que não aprenderam com o sofrimento? Onde esconder o desprezo que sinto pela nobreza? Como fechar a boca para não xingar ou cuspir?


A água que sai da torneira é um bálsamo. Gelada, direto do degelo das montanhas para os canos. Ela espanta o sono quando lavo o rosto ao acordar, nem sempre de manhã. Sem a luz do sol nascente, não faço caso de horas. Não há muita distinção entre o nascer e o morrer do dia. 

A cortina do banheiro tem o desenho de uma teia de aranha. “A ciência da abelha, da aranha e a minha todo mundo desconhece”.
"Luz teimosa" (fotografia de Fernando Lemos)

O barulho da chave na fechadura tem o poder de espantar meu sofrer. Ele anuncia a chegada de quem aqui me mantém. Ele traz consigo sua luz. Ilumina a mim e a casa. Ele tem o poder de salpicar estrelas no meu céu, fazer o sol brilhar, a lua nascer... 


“...E a gente dança venerando a noite...” 

 “Gosto muito de você, Leãozinho...

Pra desentristecer  o meu coraçao tão só...


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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

casal em dificuldades

 Martina Flor  (nome real) é  desenhista e ilustradora. Nasceu na Argentina, em Buenos Aires --, hoje vive em Berlim.  Seu primeiro livro chama-se -- "Quase estórias, novelas inacabadas sobre gente comum" --  e traz desenhos acompanhados de textos curtíssimos. Microcontos ilustrados, se preferir.  O segundo livro de Martina tem o título de "101 Quase estórias  sobre  casais" - e é baseado em personagens reais; "alguns mais próximos, outros mais distantes", esclarece.  Alguns dos tipos são pessoas com que ela compartilhou alguma parte de sua vida (amigos, noivos ou família). Com outros, apenas trocou algumas palavras, ou avistou pelas ruas e imaginou estórias.
As frases que acompanham as ilustrações não têm mais que 200 caracteres: pouco mais que um tuíte -- como esta, por exemplo
"Carlos e Elvira estão casados há 18 anos. Ela ama outro homem."
Pelo gosto de lidar com imagens, combinei algumas estórias inacabadas de Martina com fotografias retiradas da internet
"Ele ainda não sabe que ela vai partir seu coração"
"Susi e Roli brigam o tempo todo. Ela se queixa de que ele não a ouve"
"Ramona quer experimentar o sexo a três. Sem o marido."
"Mimi conheceu Paco nas férias. Amou-o profundamente durante um mês"
desenho e texto de Marina Flor

domingo, 6 de janeiro de 2013

Quem foi Juracy Magalhães?



Morávamos eu e o Cláudio, na rua que aparece ao lado, na praia de Santo André, em Santa Cruz Cabrália.  Ficamos por um tempo perto de seis anos. Sem endereço completo, sem carteiro, sem CEP – até o nome da rua era discutível.    Tem  morador que fala  “Rua do Telégrafo”, outros chamam de “Rua da Linha”.  Os dois nomes lembram o passado, antigamente a linha do telégrafo passava por essa rua.   Para evitar confusão era melhor dizer: moro na rua do Juracy – um nativo que todo mundo no povoado conhece – ou mencionar a  pizzaria da Joyce. Porém na conta de luz o endereço escrito é outro -- diz “Rua Juracy Magalhães s/n”. Esse Juracy da conta de luz não é o mesmo que mora na rua. É  um fulano que já morreu, dele só tenho idéia vaga – sei que foi militar e político poderoso: um personagem de cúpula da elite brasileira, quem sabe um tio ou avô do Antonio Carlos.

Descobri recentemente que  Juracy não era baiano verdadeiro – nascido em Fortaleza, fez carreira na Bahia após ter sido enviado por Getúlio Vargas para ser o interventor no Estado, em 1931. Na tenra idade de 26 anos: imagine o despeito despertado nos poderosos da política baiana, cuja autoestima  andava em queda desde que Salvador perdera a condição de capital do país. Chamavam o Juracy de “político imberbe” e “energúmeno interventor forasteiro”. Juracy estava apenas começando uma longa carreira para o topo das hierarquias.
 Ele era uma lenda  do “tenentismo”, a articulação político-militar formada por oficiais de patentes menores que, aliados às oligarquias do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais puseram em marcha a chamada Revolução de 30 e desmontaram o poder político do que conhecemos como  República Velha. Queriam o fim das fraudes eleitorais e do voto de cabresto,  clamavam contra a corrupção e contra as oligarquias carcomidas pelos vícios do poder.  Os tenentes acenderam esperanças no povo. Juracy chegou em Salvador para mandar, depois de se empenhar na queda de cinco governadores.  De lenços vermelhos, seus soldados foram recebidos com flores e festa popular. Os salões da sociedade baiana não gostavam do Juracy,  mas nas ruas ele era rei.  
Em 1930 quando Washington Luís foi deposto pelo golpe de Getúlio e dos tenentes, os gaúchos ataram seus cavalos no obelisco da Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro
Juracy foi se acercando dos banqueiros, do clero, dos usineiros de açúcar, dos grandes fazendeiros. Era vaidoso, vestia-se com a elegância de um dândi, contrastando com o ditador Getúlio Vargas que colocava o cós das bombachas perto dos mamilos. 
Foi o responsável pela primeira prisão de Carlos Marighella, um dos baianos mais famosos do planeta. Marighella, estudante de engenharia civil e outros 513 universitários foram cercados no Terreiro de Jesus, onde se achava a faculdade de medicina. Os estudantes reinvidicavam a elaboração de uma Constituição democrática para o País -- gritavam contra o autoritarismo, proclamaram “Às armas, baianos!” e empunharam velhos fuzis de Canudos. Um homem foi morto Nelson Carneiro, um dos líderes da ocupação e futuro senador da lei do divórcio, foi detido e tomou uma surra de chicote e cano de borracha. Na cadeia por dois dias, Marighella compôs um poema atacando Juracy, que jamais o perdoou.
Marighella, como se sabe, morreu de tiro durante os anos de chumbo da ditadura militar. 
Já oJuracy... ah, este foi longe... li na Wikipedia  que ele
ganhou uma casa de amigos, na capital baiana, no Monte Serrat  - a mesma onde seu filho, Juracy Magalhães Júnior, cometeu suicídio. Seu outro filho Jutahy Magalhães também foi político e seu neto Jutahy Magalhães Junior é deputado federal.

Sua trajetória política foi muito beneficiada pela proximidade com os militares. Exerceu os seguintes cargos: senador da República, deputado federal, adido militar e embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Ministro da Justiça e Relações Exteriores. Foi também o primeiro Presidente da  Petrobrás  e presidiu a Companhia Vale do Rio Doce"

Espero que um dia, quando o  povoado de Santo André ganhar nomes e números da prefeitura, batizem a nossa rua de linha, de telégrafo, de ingá, de juazeiro, qualquer árvore... mas nada de Juracy Magalhães, por favor...