quarta-feira, 31 de outubro de 2012

vida de diplomata

Tenho uma amiga que é "especialista em vida cigana na empresa de Luiz Fachini Gomes" -- eis o modo jocoso que ela encontrou para definir o lado profissional de mulher de diplomata. Sonia Bonzi,  a Soninha, como é amplamente conhecida. Creio que o diminutivo perdura  há décadas devido à pegada jovial desta mulher que percorreu o mundo inteiro. Hoje o casal vive em Túnis - o marido na função de embaixador do Brasil na Tunísia e a esposa nas tarefas de embaixatriz.  Soninha ainda tem fôlego para ser mãe, avó, fotógrafa e bordadeira - tanto no sentido literal, de prendas artesãs, como no de alinhavar palavras e memórias. 
Achei aqui o primeiro capítulo de suas reminiscências, ainda na época do namoro com o futuro diplomata mineiro. 
-------------------
"Quando debaixo da minha janela ele cantava “Minha Namorada”, de Vinícius, eu não imaginava qual poderia ser a tristeza do caminho que ele me convidava a percorrer. Fui, lentamente, descobrindo.
Sair de Minas, deixar para trás meus pais, amigos, alunos, o gato angorá, tirou-me do prumo. A viagem de ônibus parecia interminável. Depois de Sete Lagoas a paisagem machucou meus olhos e tive a impressão de que Deus estava sem inspiração quando criou aquelas árvores secas e retorcidas, onde não se viam pássaros, nem qualquer outro tipo de animais. Tudo triste.
Brasília - fotografia de Usha Velasco
E como era longe a capital. As estradas batiam no horizonte e davam a impressão de serem infinitas. Numa manhã de céu muito azul, chegamos. Fui, pela primeira vez, viver longe do chão. Penduramo-nos no segundo andar de um bloco recém construído, já cheio de rachaduras nas paredes e chão que arrebentava em bolhas.
Olhar pela janela, ver a terra vermelha, seca, de onde as árvores brotavam sem vontade, me enchia de saudades dos morros e do verde de Minas.
Fui aos poucos me acostumando com a nova vida. Arrumei um emprego, conheci gente nova, fiz amigos, comecei a entender o significado da música que meu amor cantava debaixo da janela.
Minha origem humilde havia me privado de muitas coisas. Não tive acesso à intelectualidade. Meu diploma de normalista era o único que eu tinha para mostrar. Não conhecia os clássicos, não falava outras línguas, não sabia nada sobre política. Sabia outras coisas: alfabetizar, bordar, fazer crochê,..
Passei a filar cultura, meti-me num curso de inglês, aprendi algumas regras do jogo da vida diplomática. Muitas vezes senti enjoo nas reuniões, assustei-me com as casas cheias de objetos de prata, paredes recobertas de quadros, estante abarrotadas de livros.
o casal com os três filhos em algum lugar do passado
Foi entre os diplomatas que conheci muitos dos meus melhores amigos. Todos muito cultos, finos e generosos. Fui aceita e respeitada, apesar das minhas limitações. Jamais neguei minhas origens e fazia meus amigos rirem contando os casos do interior, as histórias da minha família, as piadas apimentadas que ouvia do meu pai.
Três anos passaram rápidos. Chegou a hora de arrancar as ainda frágeis raízes, que começavam a se firmar no cerrado, que eu aprendi a amar. Deixar o Brasil, despedir dos meus pais, abandonar o conhecido e me lançar em um outro desafio não foi fácil. Derramei litros de lágrimas.
Em Viena, tomei mais consciência do que realmente me esperava nesta vida de acompanhante de diplomata, sem tempo para enraizar. Caminho de mudanças, instalações, adaptações e submissão às novidades. O Embaixador, Chefe do Cerimonial do Itamaraty, dizia que cinquenta por cento da carreira dos maridos dependia das mulheres. Poderia assumir tanta responsabilidade?
Eram tantas as perguntas que eu me fazia. A cabeça não parava e eu duvidava de minha capacidade de ser a “amiga e companheira”, de sobreviver às idiossincrasias do caminho.
residência do embaixador brasileiro em Túnis (foto de Soninha)
Logo na chegada a Viena, fomos recebidos, muito carinhosamente, por funcionários da embaixada. Sem eles, que se tornaram nossos amigos queridos, a vida teria sido insuportável.
Um jantar muito formal nos foi oferecido na residência do Embaixador. Parecia que, entre as intenções do chefe e de sua esposa, estava a de avaliar o desempenho de seus subalternos recém chegados, no caso, nós.
Fui atrás de informações de como me vestir, relembrei as regras de etiqueta que me ensinaram, repassei na cabeça a posição dos talheres, dos copos… Mandamos para a embaixatriz um número ímpar de flores, conforme as normas do protocolo. Determinei que falaria pouco, não usaria “porra”, nem “pô”, como se fossem vírgulas. Não soltaria nenhuma gargalhada. Piada não contaria.
A dona da casa recebeu-nos com um olhar que nos despiu. Meu marido não lhe beijou a mão como ela esperava. Minha espontaneidade esvaiu-se, minhas mãos suavam. O sangue ferveu e afogueou meu rosto. A voz ficou pequena e uma timidez desconhecida me fez encolher os ombros.
Meus olhos buscaram refúgio na suntuosidade dos salões, nos móveis de época, enfeitados de dourado e forrados de brocados “bordeaux”. Depois vagaram pelos quadros pendurados nas paredes e pelas vitrines de cristal bisotado, repletas de obras de arte e preciosidades…
As mãos suadas, o maxilar trincado…
Tudo muito diferente!…

Sobre a mesa de jantar muitas flores, candelabros e velas, sal e pimenta em cestinhas de prata, “sous-plats”, cinzeirinhos individuais, cartões com os nomes dos comensais, cardápio escrito à mão, lavandas, objetos de porcelana, todos os tipos de pratos, pratinhos, taças e talheres.
Os garçons serviam à francesa. Eu à direita do anfitrião. Temia fazer o garçon derrubar a travessa, deixar os talheres caírem, perder a carne no caminho até o prato… Reprimia os gestos com medo de quebrar o copo de vinho branco, ou pior, o de vinho tinto e manchar a toalha de linho bordada. Não sabia se cruzava as pernas, se me encostava no espaldar, se descansava o braço na mesa, se saia correndo…
Tudo muito formal, muito distinto do que me era conhecido.
Lembrei-me da mesa da casa dos meus pais. Um prato, um garfo e uma faca para cada um. Sempre virados para baixo a fim de evitar pouso de mosca e poeira.
Fui a primeira a ser servida.
Peguei um pãozinho e logo me arrependi. Não sabia em qual dos pratinhos depositá-lo. Passar recibo de que não sabia nem onde pôr o pão eu não queria. Mantive o pãozinho entre os dedos. Continuei a conversa com o embaixador, muito elegantemente vestido. Gesticulei comedidamente. O pãozinho na mão.
Quando minha amiga, mais fina e experiente, não titubeou ao escolher o pratinho, imitei-a. Grande alívio!…
A comida chegou fria e eu me permiti achar pouco fino.
Lá em casa a comida era servida quentinha, soltando fumaça, cheirosa.
Um copo de vinho branco, outro de vinho tinto e já estava mais à vontade. Ouvi mais do que falei, mas não fiquei muda. Contei até caso. O Embaixador foi receptivo com minha juventude. Riu, brincou.
Soninha, na minha imaginação

O café tomado na outra sala foi mais constrangedor. Tive que ficar perto da embaixatriz, que, depois de falar de sua origem quase nobre, quis saber o sobrenome da minha família. Foi difícil segurar o riso. Como ela poderia conhecer meus antepassados, imigrantes italianos no Espírito Santo, colonos em lavoura de café, donos de venda?
Meu olhar passeava pela escadaria imponente, que descia em curva até o “hall” de entrada.
"Técnicas para festas" - desenho de Saul Steinberg

Não combinava comigo aquele constrangimento cerimonioso. Onde estava a moça animada, alegre e falante lá de Minas? Anjos passavam levando a conversa. Eu não tinha o que dizer quando a embaixatriz falava de porcelanas, pratas, baixelas… Menos ainda quando contava de seus encontros com gente da altíssima, dos casamentos pomposos ou divórcios reais… A empolgação da embaixatriz com a aristocracia me deixava perplexa. Eu não conhecia rei, rainha, príncipe, conde ou duquesa. Nem os nomes dos burgueses notáveis eu sabia. Desconhecia a genealogia dos Habsburg, nunca tinha ido à Grécia, nem sequer tinha visto um iate de perto…

Voltei para casa desconsolada, descrente do meu sucesso como mulher de diplomata, sem nenhum entusiasmo com o caminho que começava a percorrer.
…E chorei bem de mansinho sem ninguém saber por quê…"
--------------
outra crônica de Sonia Bonzi pode ser encontrada aqui
e aqui

sábado, 27 de outubro de 2012

Billie Holiday (LADY DAY)



Nova York, manhã de 17 de julho de 1959.  A cantora Billie Holiday morre aos 44 anos num hospital do Harlem com o organismo debilitado pelo uso descontrolado de álcool e drogas. Silencia a voz de uma grande cantora de jazz.  A história dolorosa de Billie é bem conhecida – quando ela nasceu seu pai tinha 17 e a mãe apenas 13 anos.  O pai era guitarrista, banjoísta e egoísta. Largou as duas. Saiu da cidade. Na infância sem inocência Billie foi violentada por um vizinho. Mudou-se com a mãe para New York. Passou fome, se prostituiu ainda adolescente, teve casamentos e relacionamentos tumultuados, adquiriu o vício da heroína e a fama eterna. Foi o saxofonista norte-americano Lester Young que lhe deu o apelido de Lady Day. Os dois gravaram juntos cerca de cinqüenta canções repletas de swing, cumplicidade e talento invulgar.
quadro mostrando Lady Day com orquestra
Se fosse pela biografia, Lady Day seria Lady Night – até porque passou boa parte da existência apresentando-se em casas noturnas.  A primeira negra a se tornar cantora em bandas de branco no auge da segregação racial nos Estados Unidos.  Costumava terminar os shows cantando Strange Fruit, uma canção de protesto contra o racismo. A música compara  "as estranhas frutas" com os cadáveres dos negros linchados e dependurados pelos pescoços nas árvores do Sul do país.   Em 1999 – quarenta anos depois da morte de Billie – a revista Time elegeu Strange Fruit como a canção do século.
Há uma versão em português de Carlos Rennó

"Árvores do Sul dão uma fruta estranha
Folha ou raiz em sangue se banha 
Corpo negro balançando, lento
Fruta pendendo de um galho ao vento", dizem os primeiros versos.
A sequência é de arrepiar:
"Cena pastoril do Sul celebrado
A boca torta e o olho inchado
Cheiro de magnólia chega e passa
De repente o odor de carne em brasa
Eis uma fruta para que o vento sugue
Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue
Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta
Eis uma estranha e amarga fruta".
"Lady Sings the Blues" 
Dona de voz única, Eleanora Fagan (seu nome de batismo) se fez conhecida  pela interpretação emocional doce e sensual de suas músicas, repletas de elementos trágicos, melancólicos, transbordantes de dor e tristeza. Reflexo da experiência pessoal de uma mulher negra, marginalizada pela sociedade de seu tempo. 
A artista influenciou os rumos do jazz -- virou mito. Fazia da voz um requintado instrumento e não cantava uma música duas vezes da mesma forma.   De 1933 a 1944, Lady Day viveu seu apogeu – depois o descontrole do vício começou a afetar o frescor e a jovialidade de sua voz. Mesmo vivendo a decadência, bastava Lady Day interpretar os primeiros versos de um blues, para o fiapo de voz assumir proporções gigantescas.
----------------
ouça  strange fruit    

domingo, 21 de outubro de 2012

a casa do Clodovil em Ubatuba

Ontem de manhã meu marido e eu resolvemos sair de Paraty para passear e almoçar em Ubatuba. No caminho, decidimos passar na praia do Léo para visitar a casa de praia do Clodovil. Lembrando que além de estilista, Clodovil foi um dos deputados  federais mais votados no estado de São Paulo em 2006.
Decidimos parar na mansão porque neste final de semana ela está aberta ao público interessado em comprar móveis, louças, quadros, livros ou alguma estatueta de sapo da coleção do figurinista.  Um bazar, do tipo "família vende tudo."
 A casa está situada no meio da Mata Atlântica, em cima de um morro, uma visão estonteante da natureza. Como não era permitido subir de carro até lá, o jeito foi esticar as pernas na subida -- uma bela caminhada apreciando as árvores e o paisagismo.
Temíamos um programa infeliz, com gente demais, talvez até um pouco de tumulto. Boa surpresa: havia poucas pessoas quando chegamos, nem foi preciso enfrentar fila, talvez por ser distante da cidade ou porque houve pouca divulgação da venda. A foto acima mostra a "sala azul" com obras originais de pintores brasileiros famosos como Scliar, Aldemir Martins e outros.  A curiosidade se aguçou -- foi ótimo andar por tanta sala e quarto sem dono (oito suítes).
Achei sobretudo interessante esta sala de estar com chão singular:  sem piso industrializado, os pés na areia fofa da praia.  Quando o dono da casa era vivo, mandava os empregados desenharem "ondas"  na areia trazida da beira-mar.
Outra peculiaridade - os cômodos da mansão são "desmembrados" -- cada vez que se muda de ambiente é preciso passar por jardins internos, olha só as jabuticabeiras fazendo parte da casa, entre a sala e a cozinha.  Mesmo sem cuidados os espaços verdes ainda são deliciosos --  a vista sempre encontra árvores, plantas ou mar.
Na decoração,  a mistura do clássico com o rústico. O teto revestido de palha esconde os caibros do telhado
um dos terraços da residência com vista para a Praia do Leo
... e até uma capelinha, quase em ruínas, uma graça, no meio das árvores
compramos alguns objetos de boa qualidade por precinhos de bazar -- a melhor aquisição foi um par de panelas de cobre made in france
esta moringa artesanal, assinada por "nica"
e alguns outros poucos objetos de cozinha como a travessa de porcelana com suporte de ferro pintado. Havia serviços de louça belíssimos, foram comprados por donos de restaurantes de São Paulo.

Escrevo agora quase dois anos depois que estivemos na casa do Clodovil. A data no calendário marca 18.8.2014. Àquela época, eu não sabia que este post despertaria tanto interesse;  é um dos mais procurados aqui do blog, com quase 7 mil acessos. Ontem à noite, organizando meu banco de imagens encontrei mais algumas fotos da casa. Imediatamente decidi trazê-las para cá. Esta do quarto salmão, a memória não ajuda... Não sei dizer com precisão se era o quarto da mãe do Clodovil ou se era um quarto de hóspedes comum. A cama já estava se deteriorando, como é possível perceber. A roupa de cama e as cortinas de renda estavam ainda em bom estado.

Um recanto do  jardim  decorado com plantas em vasos e espelho de água.
As esculturas modernistas ficavam na beira da piscina, de frente para o mar. Lindas! Gostaríamos de tê-las comprado, mas eram caras.
  A vista para o mar era belíssima, assim como para a mata. Um lugar esplêndido.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

estrada paraty-cunha, a pé

queda d'água aos pés de Paula Carpi

Paraty em foco, é um acontecimento que acontece no início da primavera desde 2005.  Nessa época, Paraty é invadida por caçadores e apreciadores de fotografia que passam cinco dias trocando informações, compartilhando saberes, participando de oficinas e assistindo a imagens projetadas nos paredões brancos da cidade colonial. No último evento, as ruas empedradas do Centro Histórico estavam repletas com  milhares de participantes (calculados em 6 mil), quase todos com uma câmera na mão. Paulistanos e cariocas, mas também sulistas e mineiros, sem contar os convidados internacionais. Pela localização de Paraty, todos chegaram por via rodoviária. Mas um grupo, organizado em torno do conhecido fotógrafo Marcos Santilli, ousou um pouco mais: veio a pé desde Cunha até Paraty.
-----------------------------
Veja a matéria da revista de Haroldo Castro para a revista Época. 
"Marcos Santilli, um fotógrafo com mais 40 anos de experiência – ele se autodenomina um fotosaurus – mora em Cunha, no alto da serra. Em linha reta, Cunha está a apenas 29 km de Paraty. Mas pela estrada que ziguezagueia a Serra do Mar a distância sobe para 48 km. A estrada fazia parte do Caminho Real e era uma das várias alternativas para entrar Brasil adentro. Desde o século 17, quando Paraty se tornou um importante porto, escravos chegavam da África para trabalhar no interior. O ouro descia das Minas Gerais até Paraty por estas estradas empedradas de cargas e burros.
Santilli escolheu uma das variantes do Caminho de Ouro para levar colegas e alunos serra abaixo. Nada melhor do que falar sobre fotografia no meio da Mata Atlântica e em uma de suas mais belas reservas, o Parque Nacional Serra da Bocaina. A oficina, organizada por Katia Scavacini, começou em sua Pousada dos Anjos na noite anterior, com uma explicação histórica da região e de como os Caminhos do Ouro – uso a palavra no plural, pois o contrabando criou inúmeras bifurcações – escoaram o precioso metal em direção ao porto.
fotografia do grupo pelo guia Nino
Na manhã seguinte, éramos dez pessoas na trilha. O guia local Nino abria a fila e oito fotógrafos iam no meio do pelotão: o próprio Marcos, seu filho Luã, Luiza Bongir de Belo Horizonte, Joseane Daher de Curitiba e Paula Carpi, Liliane Meira e Giselle Paulino de S. Paulo. Eu também estava lá. Quando Marcos me convidou a descer um trecho da serra a pé, adorei a ideia de estar no mato fotografando durante um dia inteiro.
Saímos do pé da Pedra da Macela e durante uma hora descemos por campos abertos até um vale
pedra da macela (1840m) fotografia de Luã Santilli
 De lá, entramos na mata fechada, subimos uma bela encosta e encontramos um dos trechos do Caminho de Ouro. 
pai e filho na fotografia -- Marcos e Luã
Em diversos pontos do Caminho do Ouro, muros de até um metro foram levantados para que os animais não caíssem na ribanceira. Foto © Marcos Santilli
cogumelos alucinados de cor,  foto de  Daher
bromélia no caminho por liliane meira
Chegaram na cachoeira dos sete degraus (olha que nome lindo), oito horas depois. Final da caminhada.
------------
laboratório de fotografia e de vida
belíssimo
bravi
no próximo ano, pretendo juntar-me ao grupo
(se é que aceitam anciãs)

domingo, 14 de outubro de 2012

Salto Ángel, a maior cachoeira do mundo



As cenas iniciais do filme O mensageiro (The go-between) mostram as vidraças de uma casa vitoriana batida pela chuva, grossas gotas d’água deslizando pelas vidraças;  na parte baixa da tela aparece  a frase O passado é um país estrangeiro -- as coisas acontecem de modo estranho por lá.
Falo de uma viagem feita em 2005, para um país estrangeiro.  Três pessoas pegaram um voo saído de Brasília com destino à cidade de Boa Vista (RR).  De lá tomaram um ônibus para Santa Elena de Uairen, na tríplice fronteira existente entre o Brasil, a Venezuela, e a Guiana.  O objetivo era alcançar o Parque Nacional Canaima, no extremo sudeste da Venezuela para ver a água cair 979 metros -- do célebre Salto Ángel ou Angel Falls (os índios chamam de Parekupa-meru), a maior cachoeira do mundo.  Para chegar até Santa Elena é preciso atravessar uma área indígena, a Raposa Serra do Sol, uma visão monótona de vegetação rala pontilhada por placas tipo Terra de Macunaíma ou Resgate da dignidade: à época havia um conflito de terras com os índios da região.
A furreca do ônibus rodava por milagre, parando para esfriar o motor a cada vez que a fumaça subia. Os passageiros desciam para esticar as pernas, conversar, fumar um cigarro. Carros vindos de Boa Vista zuniam intermitentemente na estrada, são os pampas-bombas, automóveis com tanques de gasolina extendidos. Vão até a Venezuela comprar gasolina por uma merreca para revender no Brasil com  lucro.  De vez em quando um desses carros velhos explode, e era uma vez um motorista. 
Para passar a alfândega venezuelana neste ponto do território é bom estar preparado para alguma hostilidade. Primeiro houve uma dissensão entre os viajantes porque um homem jovem, dizendo-se equatoriano, pediu para passar a aduana como se fosse o quarto membro do grupo. Os dois brasileiros concordaram, mas a mulher se opôs por questão de prudência. Porque precisa de nós? O equatoriano tartamudeava, resposta clara não se ouvia. E se ele tem algum problema mental, contrabando, documentos irregulares, fobia de guardas de fronteira, droga. Despediram-se do frustrado equatoriano com um certo aguilhão na consciência solidária.. 
Momentos de tensão com os guardas da fronteira: nitidamente antipáticos, arrogantes. Reviraram as três mochilas, as peças de roupa pelo avesso, exigiram ver e pegar o dinheiro, colocaram as notas de dólares e os bolívares em cima da mesa como cartas de baralho.  Passado o mal-estar, chegaram a Santa Elena de Uaiten, um lugarejo caótico de fama nefasta, lugar de aventureiro. Rota de cocaína, zona de garimpo, prostituição visível, restaurantes tumultuados. Becos saindo das esquinas. Registraram-se num hotel feinho, era limpo; o casal magrinho que administrava a hospedagem mal falavam espanhol, pareciam chineses ou seriam coreanos?
Não importa, sorriam.
----------
(continua no post debaixo)

Salto Angel, Venezuela



Na manhã seguinte, tomaram ônibus para Ciudad Bolívar, distante 700 kms, um trecho da viagem dentro do Parque Nacional Camaina (Gran Sabana), patrimônio ecológico da Venezuela. Cheio de lagoas e rios, o parque dá oportunidade de se apreciar os tapuis,  formações naturais altíssimas parecidas com mesas gigantes.  É de Ciudad Bolívar que os viajantes decolam para a Laguna de Camaina, na rota do Salto Ángel.  O frete aéreo mais barato é de tecoteco, velhos e minúsculos Cessnas de precário chão de tábuas, cordinhas enroladas nas maçanetas das portas.  Chovia dentro e fora do Cessna. O pouso é no acampamento da aldeia Camaina, uma ilhota defronte a 3 cachoeiras estrepitosas.  Quartos amplos, agradáveis ao olhar, redondos. A noite foi de conversas e risos no jantar com um casal de turistas da própria Venezuela.  O marido ardoroso adepto de Chavez, a mulher uma oposição medonha. Discutiram e brigaram ao longo de todos os pratos e copos, sempre por motivos políticos. Antes de deitar, a lavagem da roupa suja nas tinas, algumas páginas de Machado de Assis.  

Únicos brasileiros naquela penca de turistas, variada de espanhóis alemães escandinavos japoneses.  Dali para o Salto Ángel segue-se em curiaras (uma canoa indígena comprida).  Numa delas coube os três brasileiros, um casal de franceses, um belga, e três indíos bilíngües em espanhol e kamarakoto. Um autêntico e maravilhoso programa com índios. A subida do rio leva quatro horas de luta com as corredeiras, aparecem pedras antigas à superfície, é preciso desviar-se delas a todo momento, parece sinistro, conta-se com  a perícia dos remadores. 
fotografia david dominguez
 A visão embarca os altíssimos tepuis, a rica vegetação, cascatas, pássaros. A canoa não virou. Próximo ao local de acampamento, no meio da mata amazônica que se espalha pela Venezuela,  é preciso passar repelente químico. Selva é lugar estranho pra quem vem da cidade. O percurso até a cachoeira é curto, a pé dá uma hora, e meia, montanha, acima, acima. Esfalfa-se.  Uma plantinha delicada, de frutos lilás, chamou a atenção de Cécille, a moça francesa. Estendeu a mão para colher o fruto.
Parou, quando o guia gritou:
No lo toques”
Era a planta do curare.  Que toque sinistro.
Um esforço final na subida e -- ecco -- surge o poço formado com água da cachoeira. É preciso torcer o pescoço todo pra cima pra enxergar de onde vem a água. Esse shangrilá foi encontrado pelos próprios venezuelanos em 1910. Em 1937, um aventureiro americano que procurava ouro, Jimmy Angel, "redescobriu" o lugar e conseguiu batizar a cachoeira com o nome dele: Angel Falls. Oscar, o guia índio faz um comentário em tom baixo... "nossos antepassados viviam aqui desde sempre...desde antes dos estrangeiros"
---------------
(continua no próximo - e último -- post)