domingo, 17 de novembro de 2013

Trata-se de ficção

"O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano, entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela.
O imperador mandou embalsamar o cadáver e transporta-lo para a sua câmara, recusando separar-se dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens."
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Extraído do livro "Seis propostas para o milênio", de Ítalo Calvino

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Manakamana

Olhei de relance para as performances dos artistas de rua – lá estavam o Elvis Presley da Paulista e um homem que vestiu azul e saiu de Yemanjá. Estava com pressa: havia combinado ver dois filmes com uma sobrinha. O primeiro narra a emocionante história da jovem belga “Suzanne” ao longo de uns 20 anos. Filme bom, premiado. Porém o que ficou na minha mente foi o segundo filme, “Manakamana”, cujo título significa “desejo no coração” e é o que se chama de filme arrastado. Tomadas longas, exasperantes, tanto que vários espectadores abandonaram a sala de exibição.
O documentário mostra os peregrinos que sobem de teleférico ao templo da deusa Bhagwati, um dos mais famosos santuários do Nepal. Antigamente o percurso era feito a pé, montanha acima, levava horas. O templo nunca aparece, nem a imagem da deusa – os diretores não quiseram explorar o “exótico”. A viagem vale mais do que o destino, parece dizer o filme. Estamos na verdade olhando para os rostos dos passageiros, ouvindo conversa fiada, observando a linguagem corporal – tudo contra o cenário deslumbrante das montanhas e florestas do Nepal. Os passageiros vão de mulheres trajando saris coloridos, adolescentes nepaleses tirando fotos com suas câmeras digitais idênticas, um casal com um galo no colo, um par de músicos afinando seus instrumentos, um carro cheio de cabras...Um filme diferente sobre a convivência do moderno e do antigo, sobre o tempo e sobre a percepção

domingo, 20 de outubro de 2013

seguro viagem Porto Seguro

Às 3:15 da madrugada o despertador do meu marido nos acordou.  Cláudio havia programado sair de Santo André na balsa das quatro horas no rumo de Paraty, levando o carro abarrotado com os últimos pertences que tínhamos no povoado: livros, fotografias, panelas, varas de pescar.    Mais tarde eu tomaria um avião para São Paulo.  Despedimo-nos com votos de boa viagem.  Voltei a dormir até ver o brilho do sol bater nas folhas dos coqueiros da Pousada Ponta de Santo André. Arrumei a mala, dei uma última volta pelas ruas da Vila e sentei na varanda para aguardar Teresa – ela me levaria para o aeroporto na balsa das 11:30. Como se fosse um pressentimento do que estava por acontecer, a balsa estava lotada, nosso carro foi o último a caber na embarcação.
Tudo correu bem até chegarmos em frente ao Barramares – ali fomos surpreendidas por um enorme engarrafamento. Grandes galhos de árvore e dezenas de táxis bloqueavam a estrada – dali para a frente não passava ninguém.  Era um protesto organizado dos taxistas de Porto Seguro. 
Impossível chegar ao aeroporto.  Um amigo, o Leonardo, me deu uma força pegando minha mala, e assim atravessamos a pé toda a confusão de motoristas revoltados. Encontrei um taxista que se prontificou a me levar para o aeroporto por um caminho alternativo que passa pelo Alto do Mundaí, pega uma esburacada e lamacenta estrada de terra e continua pelos bairros do Geraldão,  Paraguay e Sapoti. Eu não conhecia aquele caminho, dizem que é a zona mais perigosa da cidade.  Só naquele momento o motorista  avisou o valor da corrida – o dobro do preço normal – e se eu não concordasse podia descer ali mesmo.  Sem outra opção, tive que aceitar.
Entendi as razões dos taxistas, só que aquele senhor agiu mal...

Finalmente chegamos na estrada que vem de Eunápolis para Porto Seguro, perto do IFBA. Logo depois, outro bloqueio, ainda mais concentrado. Desci do carro, paguei a corrida e comecei a arrastar minha mala em direção à Rodoviária sob um sol africano que queimava minha testa e me fazia suar.  Andei mais de uma hora, encontrei a Luzia e uma amiga naquela balbúrdia, nem deu tempo para conversar.  Grupos de estudantes caminhavam a pé – imaginem o tumulto nas escolas, nem os pais podiam pegar as crianças nem o transporte escolar.
Consegui chegar a tempo de embarcar no voo para São Paulo: estava vazio. A aeromoça me contou que dos 158 passageiros confirmados, só 54 conseguiram chegar.
o avião vazio

Tudo isto me deixou com a pulga atrás da orelha... e se isso acontecer durante a Copa do Mundo de 2014?

sábado, 21 de setembro de 2013

viajar para Roma pela Alitalia

O ar condicionado no voo Sao Paulo-Roma serviria para um frigorifico: temi um ataque de alergia e nao é que acertei?
Meu rosto ficou coberto de placas vermelhas. No dia seguinte, procurei uma farmàcia. Mesmo minha filha explicando que nao posso tomar aspirina me deram uma droga que continha a substancia. Tomei um comprimido, a reaçao nao se fez tardar, dois dias depois meus olhos fecharam sob o peso do inchaço. Nem deu tempo de usar meu seguro de saude internacional. Filha e genro decidiram me levar para o hospital di Santo Spirito na cidade do Vaticano. Hospital publico, bastou meu passaporte para garantir o atendimento no pronto socorro. Tomei soro e injeçoes anti-histaminicas. Fiquei horas em observaçao.
Ao meu lado, uma senhora gemia alto e chamava Francisco.
Pensei que era seu filho, mas que nada -- ela estava chamando o Papa!
Como ele devia estar muito ocupado, ela mudou o chamado para "mamma, mamma, dove sei?" (onde estàs, mamae?)
Coitada, parecia estar sofrendo muito...
Fui muito bem atendida, sai de là em bom estado, embora meu rosto ainda pareça com o de uma japonesa gorducha...
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-- de médicos e de hospitais
um assunto em voga no Brasil de hoje...

viver em Roma

Ponte Milvio, construída 200 anos antes de Cristo, famosa pelos cadeados que os enamorados colocavam em seus postes - e depois jogavam as chaves no rio Tibre. A prática acabou sendo proibida pelas autoridades pois estavam danificando a ponte. Em 2011, os "cadeados do amor" foram retirados. Há uma concentração de restaurantes e bares com mesinhas nas calçadas nos arredores, bem agradável para a hora dos aperitivos.
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(esta é uma pequena colcha de retalhos de uma viagem que fiz à Roma, recentemente)
Passei no Palácio Barberini para rever as escadarias e uma das telas mais queridas de Raffaello Sanzio, este que é um dos maiores pintores italianos de todas as épocas. Tanto que o ano de sua morte, 1520, assinala o final do Alto Renascimento. Nascido em Urbino, Rafael trabalhou em Perugia e Florença, alcançando o apogeu da fama na Roma papal, onde faleceu com a idade de 37 anos. É no Barberini que se encontra o ultrafamoso retrato de Margherita Luti, a amante predileta do artista, conhecida como "La Fornarina" , por ser filha de um padeiro ("fornaio", em italiano) . Pude ver, de pertinho, a fita que lhe cinge o braço esquerdo com a assinatura do pintor - uma atitude atrevida para a época. Assim, Rafael proclamou ao mundo que além da obra, a modelo também lhe pertencia. Embora não a tenha desposado, colocou uma aliança no dedo anular da mão esquerda de Margherita. Rafael está enterrado num local espetacular:simplesmente no Panteão. Seu epitáfio diz: " Aqui jaz Rafael que enquanto vivo fez a Natureza ter medo de ser conquistada por ele e quando agonizava deixou-a temerosa de morrer junto com ele"

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Abaixo, outra tela de Raphael retratando a Margherita
Esta se chama "La donna velata" (a mulher com véu)
encontra-se no Palácio Pitti, em Florença
 Outro episódio da viagem:

Peguei um ônibus para Trastevere num dia tão bonito que a contemplação da paisagem me distraiu e me fez passar do ponto. Aflita, virei-me para o passageiro sentado ao meu lado. Gentilmente, ele me explicou o que deveria fazer para dar meia-volta. Quando descemos, ele me mostrou o ponto de ônibus do outro lado da rua. Agradeci e já começava a atravessar a faixa de pedestres quando ele perguntou se eu não gostaria de ir até a casa dele.
-- Signore! Io sono una nonna!
-- Signora, anche Io sono un nonno...
(--Senhor! Sou uma vovó!
--Eu também sou avô, minha senhora... )
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cara de pau, viu?

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Flores Raras, o filme de Elizabeth Bishop

Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.”

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O filme “Flores Raras” inicia com versos de Elizabeth Bishop, a grande poeta norte-americana que em 1951 navegou pela costa brasileira até encantar-se pelas montanhas de Petrópolis e pela arquiteta  Lota de Macedo Soares  com quem viveu um romance de 16 anos entre grandes alegrias, sofrimentos, crises de alcoolismo e extraordinários poemas. 
Foi Lota quem idealizou e administrou a construção do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro.
Vale a pena desfrutar a direção de arte primorosa -- a fita tem um clima "de época" --  e o deslumbrante cenário avistado por quem habitava uma casa de vidro no meio da Mata Atlântica cercada de jardins belíssimos.
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Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.”


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Acabei me envolvendo emocionalmente com a narrativa  – também perdi três casas e o relógio de meu pai – e me encantei com a forma delicada de tratar o tema da perda, no poema e no filme.
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Tenho saudades deles. Mas não é nada sério”.
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Quem nunca?

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no post abaixo, a casa de Elisabeth Bishop em Ouro Preto 

Elizabeth Bishop - a casa em Ouro Preto

A poeta Elizabeth Bishop é desse tipo de artista cuja vida entrelaça a própria obra.  Viveu 16 anos no Brasil, a maior parte do tempo entre Petrópolis e o Rio de Janeiro.  Um de seus desejos era conhecer a cidade de Ouro Preto -- ali ela comprou e restaurou uma casa antiga e linda, quando já era uma poeta renomada vencedora dos prêmios Pulitzer e National Book Award.  Achei uma matéria sobre esta casa,  escrita pelo artista plástico José Albert Nemer, amigo da poeta desde a juventude e responsável pela manutenção da casa hoje em dia.
Eis o seu relato: 
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"Conheci Elizabeth Bishop em 1968, na casa de um amigo, em Ouro Preto, MG. Conversamos durante o almoço, e ela me convidou para tomar o café na casa dela. Na época, Elizabeth tinha 57 anos, mas parecia ter muito mais. Aos poucos, essa impressão foi passando, pois, embora ela fosse realmente frágil fisicamente, tinha um olhar vivo e interessado sobre as pessoas e as coisas. Nesse encontro, enquanto ela preparava o café na cozinha, seus dois gatos – Suzuki e Tobias – se instalaram sobre as minhas pernas, no sofá da sala. Quando ela voltou, achou graça da intimidade dos gatos e comentou que eles “nunca perdem a oportunidade de experimentar o colo de algumas visitas”.
Eu era muito jovem e, embora não lesse em inglês nem conhecesse sua poesia (entre suas obras, Poemas do Brasil e O Iceberg Imaginário e Outros Poemas, pela Companhia das Letras), podia sentir a dimensão de seu talento em suas observações. Alguns desses insights, de tão sensíveis, poderiam ter virado poema. É o caso do comentário que fez sobre uma lamparina de querosene que ficava sobre a lareira. Era um trabalho popular e artesanal que usava o bojo de uma lâmpada queimada sustentada por alças de lata recortada, terminando com uma tampinha de garrafa de onde saía o pavio: “Agora sei por que gosto tanto deste objeto. Quem fez isso quis ressuscitar a luz da lâmpada”
Ficamos amigos. Elizabeth acabava de voltar dos estados Unidos e de restaurar sua casa de Ouro Preto, comprada três anos antes, para nela se instalar. Depois de pronta, deu-lhe o nome de Casa Mariana, em homenagem à sua incentivadora Marianne Moore. Sua implantação e seu entorno já a colocam em situação privilegiada. Datada entre 1698 e 1711, é um exemplar raro do período do ouro e do diamante em Minas Gerais. Construída sobre um rochedo e com vista sobre a cidade e as montanhas, a casa, de 513 m², tem um imenso terreno que desce em terraços, com jardins e pomares sustentados por muros de pedra. Um riacho corre ao lado, margeando o terreno. Em carta a um amigo, Elizabeth conta que “a casa tem o telhado mais bonito da cidade: é como uma lagosta emborcada com a cauda em ângulo reto, onde fica a cozinha”. Ali, ela fazia, com alegria e métodos precisos, pratos deliciosos, como as abobrinhas ao forno, o lombo com purê de maçã-verde e a conserva acre-doce de legumes em banho de mostarda – esta, inigualável.
Ser seu hóspede era um instigante exercício da sensibilidade. A atmosfera da casa sempre pareceu mágica. Os móveis, típicos da região nos séculos 18 e 19, foram adquiridos em antiquários. Outras peças, como a lareira e a banheira, foram trazidas por ela dos Estados Unidos, assim como utensílios de cozinha de designers nórdicos. Acordava-se ao som de bob Dylan, Janis Joplin e Alfred Deller. No café da manhã, tinha-se a companhia da dona da casa para sua segunda xícara. A primeira, a empregada lhe servia na cama, bem forte, amargo, pingado de leite, com duas torradas quentes, manteiga e uma geleia de laranja que ela mesma fazia. A cama – com as cabeceiras em forma de pescoço de cisne – servia também para rascunhar poemas. No dia a dia, Elizabeth tinha o olhar muito atento e achava graça nas coisas, nas conversas, nas pessoas. Ríamos muito. Era uma graça  criativa, fisgando o aspecto insólito de certas situações, elevando o cotidiano banal à categoria de pura poesia. Observadora afiadíssima, sua leitura da realidade era muito mais pelo understatement do que pela fachada puramente objetiva. Esse estado de espírito me lembra a definição de Pascal, “esprit de finesse”, mas também de perspicácia e penetração.
Quando seu grande amigo, o poeta americano James Merrill, veio visitá-la, ela o recebeu e logo invernaram por uma conversa sobre suas vidas e mágoas. Nessa época, eu estava hospedado na casa e entrei na sala no momento em que Elizabeth chorava. Percebendo isso, discretamente fiz meia-volta e saí. A poeta me chamou e disse: “pode entrar, eu estou apenas chorando em inglês”.
Quando Bishop morreu em Boston, em 1979, a Casa Mariana ainda lhe pertencia. Em 1982, minha irmã, Linda Nemer, a adquiriu da herdeira principal, Alice Methfessel. Mesmo sendo onde a família Nemer, em sua terceira geração, se reúne, a casa guarda intacto o aspecto original deixado pela poeta. Sempre houve o cuidado de dar-lhe a dimensão histórica merecida, estimulando sua vocação de ser um centro de referência à memória de Elizabeth Bishop e sua obra. Além de sua qualidade intrínseca, a Casa Mariana constitui-se, hoje, na mais autêntica e contundente presença de Elizabeth Bishop no Brasil."

sexta-feira, 7 de junho de 2013

a vida em Paraty



Encontrei uma brasiliense nas aulas de yoga na praia do Jabaquara -- Márcia Lage. Como eu, ela também se mudou para Paraty no ano passado, vinda da capital federal. Foi como encontrar uma conterrânea, pois Brasília é uma das  cidades importantes de minha vida. Ganhei a permissão da Márcia para postar um texto dela (abaixo)
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"Inventário do envelhecimento

A conversa era sobre preconceitos e minha amiga, 17 anos mais moça que eu, saiu com essa:  “....Até velhas de olhos verdes como você são vítimas de preconceito”. Como assim, basicamente? Preconceito porque sou velha? Ou porque tenho olhos verdes? Ou porque, apesar dos olhos verdes, sou velha?  
Não entendi a relação, mas como a palavra “velha” dói feito um preconceito em quem já passou da primeira metade da vida (considerando que a primeira metade termina aos 50, não mais aos 40, como antigamente), passei uma noite em claro. De manhã, considerei que toda aquela cara amassada diante do espelho era resultado da insônia.
 Fui para a aula de Yoga e, tirando uma dificuldade aqui, outra ali, estava tão flexível e leve quanto as garotas de vinte ao meu lado. Aliás, aquele gatinho de vinte e cinco, no máximo, estava tão travado que, perto dele, eu era uma bailarina chinesa.  Perscrutei minha alma durante o alongamento, e não encontrei nenhuma ruga. Meu coração, também, estava intacto, cheio de boas emoções.

Então voltei para casa, num indescritível estado de serenidade, e olhei novamente no espelho. A  cara continuava amassada. Peguei a câmera fotográfica, virei a tela lateral para o meu lado, e tentei fazer uma foto três por quatro, para ver como as pessoas estavam me vendo.  Sim, havia uma velha brotando naquela boca sem mais contornos, naquele perfil onde o nariz arrebitado começava a cair.

Os olhos, sim, continuavam verdes, mas nem as duas cirurgias de pálpebras que eu havia feito, uma aos 45, outra aos 55, davam jeito na lateral que despencava, formando um sulco profundo. As sombrancelhas, já redesenhadas com henna por causa dos pelos escassos, estavam mais para ridículas do que para bonitas. Entre elas, uma ruga de expressão que vinha desde o berço me dava ares não mais de brava, mas de contrariada, cansada, quase triste até.

Isso me deixou intrigada, porque aquela expressão contradizia minha paz interna, minha disposição de viver, minha alegria e bom humor. Estranho, muito estranho...teriam os cirurgiões mudado meu olhar, ou estaria meu olhar antecipando uma tristeza que eu ainda não sentia?  Abri um sorriso de orelha a orelha para ver se a expressão melhorava. Pareceu o Roberto Carlos rindo. Lábios finos e rasgados, mostrando apenas a ponta dos dentes, também esses, tenho que confessar, já mexidos e remexidos por dezenas de dentistas.   

A imagem que eu tenho de mim é a da carteira de identidade. Uma carinha lisa e suave de 30 anos de idade. “Em que espelho ficou perdida a minha face?” declamei. Estaria Cecília Meireles beirando os 60 quando escreveu “Retrato”?  Faço as contas: se ela morreu aos 63, tinha apenas cinco anos a mais do que tenho hoje. E, no entanto, me sinto tão jovem...tão saudável... morreria feliz aos 63? Ou daqui a pouco, quando for remar? Está pronta a minha vida, posso apagar a luz e dizer adeus? 

 “Ainda é cedo amor, mal começastes a conhecer a vida”, cantarolo enquanto caminho para a praia, onde encontro os amigos do clube do SUP (Stand Up Padle). Levanto sozinha a prancha de uns 20 quilos, mais de dois metros de comprimento, quase um metro de largura no meio, e atravesso a rua com cuidado, olhando para a direita e para a esquerda, para evitar acidentes. Pareço uma formiguinha carregando uma folha de mangueira.
Márcia no stand up
 Pouso a folha na praia, no lugar aonde a onda quebra, e levanto a perna esquerda para colocar o “leash”, a corda que me mantém ligada à prancha enquanto navego. Gosto da minha perna, reflito. Gosto muito mesmo. Já foram mais bonitas e torneadas, mas continuam fortes, sem varizes ou dores. Já que o dia é de inventário do envelhecimento, apalpo também as panturrilhas, definidas e duras. Sim, boas pernas, constato satisfeita. Ainda me levam longe.

Ajoelho sobre a prancha até atravessar as primeiras ondas e me levanto. De uma vez só, trazendo junto o remo. Acerto a postura, a postura firme da montanha, barriga e glúteo para dentro, coxas tesas, joelhos semi-dobrados. Remo duas vezes de cada lado, remadas lentas e longas, acompanhadas de uma virada completa do corpo.  Aproveito o movimento para examinar as celulites. Felizmente o estrago é menor do que o que vejo nas mocinhas criadas a coca-cola e MaCDonald.  
visão da praia durante a ásana sarvangasana
  Entôo o hino de Paulino da Viola: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”, focada na ilha à minha frente. Quando chego aonde quero chegar, onde as águas são mais limpas, frias e profundas, mergulho. O mar me abraça inteira, com seus braços verdes, quentes e salgados. Impossível não ser feliz.  Se eu morresse agora, seria uma morte boa e serena. Não deixaria nada para trás, morreria em completa harmonia com as naturezas, a minha e a que me circunda. Num estado de paz pelo qual batalhei muito. E no qual finalmente me encontro.   

 Morrer agora seria mais digno? Quando eu mais desfruto da vida? Nada disso, querida jovem amiga. Quero disso muito mais. E isso significa envelhecer. Então vale a pena.  Porque é somente quando nos destituímos dos cargos conquistados, nos demitimos dos nossos trabalhos, dos bens inúteis, dos excessos todos, é que encontramos a paz. Se o preço são essas rugas, essa pele um pouco flácida, algumas manchas nas mãos e essa cara que não combina em nada com a minha alma, pago com gosto.

 Quem tiver preconceito que morra cedo. Na terrível idade entre o pavor de envelhecer e o desespero de ser jovem."                   



sábado, 18 de maio de 2013

cenas de um casamento



Colocou o telefone no gancho levemente aturdida com a notícia da chegada de Cecília e seus dois filhos a Brasília em menos  de uma semana. Aquele fora um telefonema inesperado vindo de uma amiga paulistana com quem não falava há pelo menos treze anos. No início, quando saíra de São Paulo para morar em Brasília, ainda trocavam telefonemas, cartas, cartões-postais.  Certa vez, quando fora participar de um seminário bancário em São Paulo, Cecília a convidara para jantar no amplo apartamento que dividia com o marido e as duas crianças no bairro do Morumbi, muito bem postado no vigésimo piso, o mais alto do prédio. Casara com um engenheiro que era ao mesmo tempo professor, administrador e proprietário de um curso de preparação para o vestibular, de notório sucesso no meio estudantil.  Tinha de particular a pretensão de se tornar senador da república.  Era o que Juliana lembrava daquela noite, alternado com o abraço caloroso de Cecília, a  memória da bela foto da festa de casamento no móvel baixo do hall de entrada,  e o brilho irregular das luzes da  cidades penetrando na sala de jantar através das amplas vidraças descortinadas.


Foram se afastando por inércia mútua até o esfriamento, o contato minguado do feliz ano novo ou aniversários.   Há pouco, no telefone, a voz de Cecília adquirira um desconcertante tom de mistério e opacidade dando margem à soltura da imaginação.  Explicaria tudo quando chegasse à Brasília, prometera Cecília.  Nenhuma fantasia engendrada pela mente de Juliana foi tão surpreendente quanto os fatos que efetivamente tiveram lugar na vida de Cecília nos últimos dias.  Depois de doze anos de casamento com o professor candidato a senador, ela descobrira por acaso que ele tinha outra mulher, com quem estava legalmente casado e tivera um trio de filhos, todos morando na mesma cidade de São Paulo. O trabalho de engenheiro de obras rodoviárias o levava com regularidade para fora da cidade: o álibi ideal.   Precisava viajar para trabalhar e assim conseguia conviver com as duas famílias, sem muito atropelo. Um bígamo, portador de documentos falsificados, duas certidões de casamento emitidas por cartórios diferentes.   O acaso foi cúmplice da revelação dolorosa: Cecília e o professor queriam vender o apartamento para comprar uma casa no mesmo bairro. Acabaram desistindo, por isto Cecília ficou boquiaberta quando um corretor imobiliário lhe telefonou para  pedir-lhe que enviasse  os documentos necessários para a assinatura da escritura da tal casa.  Na realidade, o professor acabou comprando a casa para morar com a outra esposa e os outros filhos.  Tivera o cinismo de levar ambas para ver o mesmo imóvel. Quem se atrapalhou, foi o vendedor. 
tela de edward hopper
 A vingança de Cecília foi engenhosa. Não falou nada em casa. Quando o engenheiro saiu para trabalhar ela deu partida ao plano de escape que planejara cuidadosamente. Veio o caminhão da companhia de mudanças e levou tudo, absolutamente tudo da moradia, até mesmo as luminárias, os espelhos e os interruptores de luz das paredes –  os fios para energia e telefone foram deixados à mostra, como em construção inacabada.  Imagine a cara do futuro senador ao chegar em casa naquela noite. Abriu a porta e deu de cara com o vazio.  Ela comprou as passagens para Brasília na surdina,  fez as malas com bastante roupa e o restante foi para o depósito, junto com a mobília.  Em prédio que só tem um apartamento por andar o nível de vigilância da vizinhança é mínimo – nem os porteiros se deram conta da fuga da mulher do vigésimo.  O marido, desesperado, chamou a polícia. O caso levou uns dias para ser resolvido: a polícia acabou chegando à casa de Juliana no Distrito Federal.

Quando isso aconteceu, Cecília já tomara outro avião.
fotografia Édouard Boubad

domingo, 5 de maio de 2013

diário de um navegante -- em Santo André da Bahia

(foto de Fernando Oliveira)
Este relato é feito sob medida para os que percorrem caminhos de maneira aventureira, como os navegadores dos mares e grandes rios.   É o depoimento de um velejador que aportou e gostou do povoado de Santo André (há outro relato dele alguns posts abaixo).   O escrevente se chama Nelson Mattos e o veleiro em que se desloca pela costa brasileira traz o nome de  "Avoante".  Obrigada ao Nelson, pela contribuição às "histórias de Santo André".

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"Navegando e aprendendo, assim vamos tocando uma vidinha mais ou menos. Falei aqui recentemente da nossa ida até Santo André, Sul da Bahia, um lugar maravilhoso que valeu a vontade de ancorar uns dias por lá. Queríamos passar uns dias a mais para saber fatos e segredos que sabia existir entocados entre o mangue, mar, rio e mata que cercam o canal de acesso da Vila Um dia eu volto! Todo esse moído é para contar de um email que veio lá daquelas belezuras paradisíacas, assinado pelo leitor Fernando Oliveira, que também mandou as fotos que ilustram esse post, e falando, entre outras coisas, das pisadas dos alemães naquelas areias no tempo da Segunda Guerra Mundial. Não sou capaz de discutir 15 minutos sobre a Segunda Guerra, a não ser os segundos de fama da minha cidade Natal. Tentei saber pelo  Google sobre Santo André no tempo da Guerra, mas não consegui nada. Com certeza deve estar lá, em algum lugar.  O que me chamou atenção no email do Fernando foi a informação que a Vila de Santo André serviu de base para os ferozes alemães. Fiquei imaginando, sentado no cockpit do Avoante, o que danado os caras estavam fazendo em Santo André. Tinham bom gosto para paisagens paradisíacas e admiravam um gostoso banho de mar antes de sair para afundar algum navio pela costa. Por tudo isso é que tenho que demorar nos lugares, pois sou um apaixonado pela história, apesar de nunca ter sido um aluno que os professores adoravam. Até hoje lembro de minha professora de história no colégio Marista de Natal, olhando para mim e perguntando: Nelson, em que você está pensando que não presta atenção na aula?
(foto: olimpia calmon)
Mas Santo André/BA, cercado de tanta maravilha natural, tinha mesmo que ter seus segredos entocados. Tomara que ainda demore muitos anos para nós chegarmos a eles.
Esta praia baiana tem se destacado na pesca de oceano e um bem organizado campeonato faz parte de suas atrações, chamando a atenção de pescadores de todos os cantos do Brasil. Em Dezembro de 2013, vai haver mais uma edição do Campeonato de Pesca do Marlim e se você é adepto dessa modalidade, é bom se programar para não ficar sem assunto."

terça-feira, 30 de abril de 2013

A primavera sempre chega (uma crônica de Sonia Bonzi)

“Não há mal que sempre dure, 
Nem bem que não se acabe”.
A primavera sempre chega, diz o provérbio chinês. 
Aqui chegou. Já não faz tanto frio. Liberto-me do peso de casacos, cachecóis, luvas e botas. Revejo meu corpo. Sinto compaixão em vez de ódio. Estou mais leve e a agressividade vai se amansando. 
Não mais dependo de bonde para me locomover. Um Peugeot 504, vermelho, me leva para onde quero. Tenho intimidade com a cidade, sei localizar bairros, avenidas, ruas, praças, parques e fontes.
 As janelas no telhado deixam entrar a luz do sol que cada vez brilha com mais intensidade. Os dias estão mais longos. Os bares começam a colocar mesinhas do lado de fora. As tulipas brotam, as árvores ressuscitam, as ruas não têm mais neve.
As pessoas continuam intolerantes, impertinentes, mal-educadas... Assustadoras. Já não faço caso delas. Vez ou outra, um grilo, mas sinto algumas conquistas comportamentais. O alemão já não soa tão incompreensível. Alguns palavrões já falo sem muito sotaque. Na realidade, acho que me aprumei. Tomei pé. “Cara feia pra mim é fome”, como diz meu pai. Evito situações que me possam desestabilizar.
tela de Edward Hopper
 Não toco nas frutas, não pego nada para olhar sem que me seja dado nas mãos. Lembro-me de contar quantos pãezinhos comi, tomo café só com a pedrinha de açúcar que me dão. Evito, na medida do possível, minhas gargalhadas debochadas, meu gesticular espaçoso... Vou aprendendo a ser mais contida. Quando vou à Itália, me esbaldo.
Frau Jelinek tornou-se personagem importante em minha vida. Anda sempre vestida com um “dirndl” vienense, a exibir os seios de 73 anos, apertados por um espartilho.

Não foi fácil nosso primeiro contato. Tínhamos contra nós a barreira da língua e seu avançado estado de surdez. Uma vez por semana, nos vemos, quando ela vem à minha casa passar a roupa. Com ela aprendo um pouco de “Wienerish”, dialeto vienense do alemão. Ein, zwo... A ela não interessa se a entendo ou não. Fala, conta histórias, gesticula, escreve palavras nos papéis, mostra artigos de revista, horóscopos... No começo eu falava umas frases em português, só para mexer a boca. Ela não ouve nada, descobri. 
Com o passar do tempo fico mais curiosa. Junto o aprendido nas aulas de alemão com o que ela fala… Quando o assunto parece mais interessante, olho as palavras no dicionário, para desvendar o tema da conversa. 
Nossa amizade aprofunda-se. Frau Jelinek é uma fonte de novidades nesta terra de gente fria e distante. 
Sobrevivente da Primeira e da Segunda Guerras, depois de passar a roupa, senta-se comigo e fala de suas lembranças, seu modo de ver o mundo. Diz que a II Guerra não foi de todo ruim. As pessoas ficavam mais animadas, mais soltas, viviam o presente, descompromissadas com o porvir.  Diz que ela não se preocupava: até gostava quando o som das sirenes anunciavam os bombardeios. Animava-se com a correria - uns para os abrigos, outros para os bosques de Viena.

 Ela ia sempre para o Wienerwald, esconder-se entre as árvores. Lá, sobre a relva, entregava-se a algum homem e fazia amor sem repressão: a busca de gozo sob a ameaça de morte. Encena o movimento dos cafés, dos soldados, dos bailes… Lembra da amiga de oitenta anos, que, no final da Segunda Guerra, quando os russos invadiram Viena, foi possuída por um jovem moscovita, sobre a mesa da cozinha. Feliz por recordar o que era sexo, encantada com o vigor do rapaz, a velhinha bendisse a Guerra enquanto viveu. Os olhos de Frau Jellinek faiscaram quando contou sobre a noite passada com um soldadinho francês, enquanto seu marido estava prisioneiro… 
Disse que os austríacos eram mais nazistas que os alemães, que Hitler foi recebido com mais entusiasmo em Viena do que em qualquer outro lugar. Lencinhos brancos tremulavam no ar.
Agora, que consigo, precariamente, me fazer entender em alemão, Frau Jelinek  apareceu com um aparelho para surdez. Disse que mandou fazer, mas só usa quando está aqui em casa. Tem horror aos barulhos da cidade, às conversas de bonde. Quando, à porta, se despede, tira o aparelho, guarda na bolsa e sai pelas ruas, feliz da vida por não ouvir.

Viena, 1975
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