quinta-feira, 22 de maio de 2014

Viagem para a Sicília

Entrei no ônibus de olho na única cadeira vazia -- o percurso da praia até Palermo levaria cerca de meia hora e as curvas da estrada desequilibram os passageiros que viajam em pé. Sentei defronte uma criatura de olhos pretos que trazia junto aos pés um enorme pacote transparente cheio de bolas de plástico. Um rapaz franzino, de tez morena, vestindo roupas folgadas de algodão branco, parecia um vendedor ambulante. Conversava em língua estranha com pessoas que estavam perto da porta. Ouvi alguém comentar em inglês que eram imigrantes de Bangladesh. Logo depois me levantei para passar meu bilhete na maquininha que fica atrás do motorista e perfura a passagem; quem não toma essa providência arrisca-se a pagar uma multa cara, se o fiscal aparecer. Tentei inserir o bilhete repetidas vezes, a máquina estava emperrada. Notei que o rapaz acompanhava meus movimentos com o olhar. De repente levantou-se, pegou minha passagem, fez outras tentativas mal sucedidas. Pedi o bilhete de volta para ler o que estava escrito. Dizia em letras miudinhas que em caso de enguiço da máquina, o passageiro deveria escrever o dia e a hora do embarque no próprio bilhete. Foi o que fiz, e voltei a me sentar. O rapaz bengalês não teve a mesma sorte, um homem sem cerimônias sentou na cadeira dele sem se importar com as bolas de plástico. A viagem prosseguia sem novidades quando o jovem voltou a se aproximar de mim com o bilhete dele na mão. Parecia aflito. Procurava ultrapassar a barreira da língua com gestos que eu não conseguia compreender. Para complicar, o homem que tomara o assento dele pôs-se a falar comigo em italiano. Dizia-me com veemência para desconsiderar o pedido do rapaz, mal ocultando a raiva. Talvez não gostasse de imigrantes, não sei. Olhei para os olhos do rapaz bengalês – e é este momento que ainda me assombra – os olhos mostravam desapontamento e mágoa. Pareciam dizer “perdi meu assento tentando lhe ajudar e você me deixa na mão?” Imediatamente vi os dois fiscais dentro do ônibus e finalmente entendi o que o jovem me pedia: para escrever a data e a hora no bilhete dele. Não sei se ele não tinha caneta ou se não sabia escrever. Rabisquei a data apressadamente, um pouco antes dos fiscais pedirem nossas passagens para conferir – deu tudo certo. O rapaz se afastou para o fundo do ônibus. Quando descemos na parada final ainda fiz um gesto de aproximação. Ele me olhou como se nunca me tivesse visto, voltou-se e começou a andar na direção contrária carregando o pacote com as bolas de plástico.

"Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho"

Lá fora, na Avenida, a parada gay bombava a tarde fresca e ensolarada. No vagão do metrô eu percebera um frenesi, uma alegria inesperada. Quando saltamos na estação Brigadeiro, um grito uníssono, uma agitação boa. Pensei que estava no meio de um "rolezinho"; sem ler jornais recentes não sabia que era a data da parada. Só então percebi as roupas de festa, os pares do mesmo sexo. Animada, fiquei andando pelas frestas da procissão até cansar dos sons e dos sapatos altos. O casal mais interessante que vi era formado por duas mulheres magrinhas, de olhos amendoados e cabelos grisalhos. As amantes japonesas, que lindas.

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem." (Guimarães Rosa)
As portas de vidro estavam abertas; depois, julguei ter visto o verso de Dante escrito em tinta invisível
"Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
Peguei a brochura "Zuleika" com a moça do guichê da recepção; disse-me que a exposição da Zuzu Angel é a mais freqüentada desde a inauguração do Espaço Itaú Cultural, nove anos atrás.
Estilista famosa, inclusive no exterior, inventou uma moda brasileira.
Mãe-Coragem.

Além do acervo estético, deixou um destemido grito, dedicando os últimos anos de sua vida à denúncia da morte de seu filho, Stuart Angel, assassinado pela ditadura militar no Galeão, num ritual de martírio atroz. Até ser jogada fora do Túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, pelos irmãos dos que torturaram e mataram seu filho e sua nora. Hoje o túnel traz seu nome.
Para ela, Chico Buarque compôs uma canção tão triste quando bela, "Angélica"

Quem é essa mulher
que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
que fez o meu filho suspirar.

Essa mulher fez o horror da ditadura repercutir em seus desfiles, em cândidos bordados aplicados nos longos vestidos brancos. Bordados de tanques-de-guerra, passarinhos engaiolados, janelas de cadeia, e armas, tudo finamente dedilhado.
Demorei para entender o recado fashion.
Três mortes, na mesma família.
Três atrizes liam as cartas da Zuzu, em diferentes espaços da exposição; ou faziam performances.
Chorei, não pude evitar.
É a nossa história, brasileira, argentina, chilena; a história da minha geração, a estória do Cláudio, a história que ainda não está nos livros.


segunda-feira, 5 de maio de 2014

Viagem para a Toscana

Decidimos passar o domingo da Páscoa em San Gimignano, uma cidadezinha conhecida como "Manhattan medieval"  por causa de suas torres. Como os ônibus estavam parados no feriado, tomamos um trem até a cidadezinha de  Poggibonsi, e um táxi para os últimos 12 kms até San Gimignamo. O vilarejo é bonito como um querubim, a quintessência da Toscana. A catedral com afrescos, jardins floridos, oliveiras, ruas espiraladas, obras de arte raras. Na hora do retorno, um sufoco inesperado. Nenhum táxi disponível, a cidade coalhada de turistas! Horas procurando. A tarde caindo, o frio chegando, começamos a pedir carona aos estranhos dos estacionamentos, sem sorte. Uma americana grávida teve pena de nós, pediu ao marido para nos levar até Poggibonsi; ele não topou. Pedi ajuda aos policiais que organizavam a pequena multidão turística - bem que eles tentaram, fazendo telefonemas, sem sucesso. Dois motoristas de ônibus fretados também telefonaram para seus conhecidos : ninguém. A gente já estava pensando em procurar hotel só com a roupa do corpo e conformar com a perda das passagens de trem para Bolonha na manhã seguinte. Desolados e cansados, sentamos num banco, foi nessa hora que surgiu o mesmo táxi que havia nos trazido - e livre! Depois do táxi ainda tivemos a sorte de pegar o último trem para Siena. Deu para chegar no hotel da Piazza Lizza, com a noite bem avançada.
Estou começando a sentir uma saudade de casa...!