quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Flores Raras, o filme de Elizabeth Bishop

Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.”

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O filme “Flores Raras” inicia com versos de Elizabeth Bishop, a grande poeta norte-americana que em 1951 navegou pela costa brasileira até encantar-se pelas montanhas de Petrópolis e pela arquiteta  Lota de Macedo Soares  com quem viveu um romance de 16 anos entre grandes alegrias, sofrimentos, crises de alcoolismo e extraordinários poemas. 
Foi Lota quem idealizou e administrou a construção do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro.
Vale a pena desfrutar a direção de arte primorosa -- a fita tem um clima "de época" --  e o deslumbrante cenário avistado por quem habitava uma casa de vidro no meio da Mata Atlântica cercada de jardins belíssimos.
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Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.”


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Acabei me envolvendo emocionalmente com a narrativa  – também perdi três casas e o relógio de meu pai – e me encantei com a forma delicada de tratar o tema da perda, no poema e no filme.
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Tenho saudades deles. Mas não é nada sério”.
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Quem nunca?

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no post abaixo, a casa de Elisabeth Bishop em Ouro Preto 

Elizabeth Bishop - a casa em Ouro Preto

A poeta Elizabeth Bishop é desse tipo de artista cuja vida entrelaça a própria obra.  Viveu 16 anos no Brasil, a maior parte do tempo entre Petrópolis e o Rio de Janeiro.  Um de seus desejos era conhecer a cidade de Ouro Preto -- ali ela comprou e restaurou uma casa antiga e linda, quando já era uma poeta renomada vencedora dos prêmios Pulitzer e National Book Award.  Achei uma matéria sobre esta casa,  escrita pelo artista plástico José Albert Nemer, amigo da poeta desde a juventude e responsável pela manutenção da casa hoje em dia.
Eis o seu relato: 
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"Conheci Elizabeth Bishop em 1968, na casa de um amigo, em Ouro Preto, MG. Conversamos durante o almoço, e ela me convidou para tomar o café na casa dela. Na época, Elizabeth tinha 57 anos, mas parecia ter muito mais. Aos poucos, essa impressão foi passando, pois, embora ela fosse realmente frágil fisicamente, tinha um olhar vivo e interessado sobre as pessoas e as coisas. Nesse encontro, enquanto ela preparava o café na cozinha, seus dois gatos – Suzuki e Tobias – se instalaram sobre as minhas pernas, no sofá da sala. Quando ela voltou, achou graça da intimidade dos gatos e comentou que eles “nunca perdem a oportunidade de experimentar o colo de algumas visitas”.
Eu era muito jovem e, embora não lesse em inglês nem conhecesse sua poesia (entre suas obras, Poemas do Brasil e O Iceberg Imaginário e Outros Poemas, pela Companhia das Letras), podia sentir a dimensão de seu talento em suas observações. Alguns desses insights, de tão sensíveis, poderiam ter virado poema. É o caso do comentário que fez sobre uma lamparina de querosene que ficava sobre a lareira. Era um trabalho popular e artesanal que usava o bojo de uma lâmpada queimada sustentada por alças de lata recortada, terminando com uma tampinha de garrafa de onde saía o pavio: “Agora sei por que gosto tanto deste objeto. Quem fez isso quis ressuscitar a luz da lâmpada”
Ficamos amigos. Elizabeth acabava de voltar dos estados Unidos e de restaurar sua casa de Ouro Preto, comprada três anos antes, para nela se instalar. Depois de pronta, deu-lhe o nome de Casa Mariana, em homenagem à sua incentivadora Marianne Moore. Sua implantação e seu entorno já a colocam em situação privilegiada. Datada entre 1698 e 1711, é um exemplar raro do período do ouro e do diamante em Minas Gerais. Construída sobre um rochedo e com vista sobre a cidade e as montanhas, a casa, de 513 m², tem um imenso terreno que desce em terraços, com jardins e pomares sustentados por muros de pedra. Um riacho corre ao lado, margeando o terreno. Em carta a um amigo, Elizabeth conta que “a casa tem o telhado mais bonito da cidade: é como uma lagosta emborcada com a cauda em ângulo reto, onde fica a cozinha”. Ali, ela fazia, com alegria e métodos precisos, pratos deliciosos, como as abobrinhas ao forno, o lombo com purê de maçã-verde e a conserva acre-doce de legumes em banho de mostarda – esta, inigualável.
Ser seu hóspede era um instigante exercício da sensibilidade. A atmosfera da casa sempre pareceu mágica. Os móveis, típicos da região nos séculos 18 e 19, foram adquiridos em antiquários. Outras peças, como a lareira e a banheira, foram trazidas por ela dos Estados Unidos, assim como utensílios de cozinha de designers nórdicos. Acordava-se ao som de bob Dylan, Janis Joplin e Alfred Deller. No café da manhã, tinha-se a companhia da dona da casa para sua segunda xícara. A primeira, a empregada lhe servia na cama, bem forte, amargo, pingado de leite, com duas torradas quentes, manteiga e uma geleia de laranja que ela mesma fazia. A cama – com as cabeceiras em forma de pescoço de cisne – servia também para rascunhar poemas. No dia a dia, Elizabeth tinha o olhar muito atento e achava graça nas coisas, nas conversas, nas pessoas. Ríamos muito. Era uma graça  criativa, fisgando o aspecto insólito de certas situações, elevando o cotidiano banal à categoria de pura poesia. Observadora afiadíssima, sua leitura da realidade era muito mais pelo understatement do que pela fachada puramente objetiva. Esse estado de espírito me lembra a definição de Pascal, “esprit de finesse”, mas também de perspicácia e penetração.
Quando seu grande amigo, o poeta americano James Merrill, veio visitá-la, ela o recebeu e logo invernaram por uma conversa sobre suas vidas e mágoas. Nessa época, eu estava hospedado na casa e entrei na sala no momento em que Elizabeth chorava. Percebendo isso, discretamente fiz meia-volta e saí. A poeta me chamou e disse: “pode entrar, eu estou apenas chorando em inglês”.
Quando Bishop morreu em Boston, em 1979, a Casa Mariana ainda lhe pertencia. Em 1982, minha irmã, Linda Nemer, a adquiriu da herdeira principal, Alice Methfessel. Mesmo sendo onde a família Nemer, em sua terceira geração, se reúne, a casa guarda intacto o aspecto original deixado pela poeta. Sempre houve o cuidado de dar-lhe a dimensão histórica merecida, estimulando sua vocação de ser um centro de referência à memória de Elizabeth Bishop e sua obra. Além de sua qualidade intrínseca, a Casa Mariana constitui-se, hoje, na mais autêntica e contundente presença de Elizabeth Bishop no Brasil."