quinta-feira, 20 de março de 2008

Evita Perón: o estilo e o poder

Beatriz Sarlo

Vestir a Rainha

“A roupa de Eva foi um negócio de Estado para um regime que descobriu as formas modernas da propaganda política e o peso decisivo da iconografia. As publicações ilustradas do regime levaram adiante uma política altamente visual, em que dezenas de fotografias diárias confirmavam a presença das vozes radiofônicas e aproximavam os corpos dos líderes. O aspecto altamente visual da cultura peronista encontrou no corpo de Eva um suporte que já tinha se preparado para ser visto, mostrar-se e repetir-se em gestos e poses, durante os dois anos de êxito de sua carreira de atriz.
Escolher os vestidos não foi uma tarefa banal, e só uma percepção desatenta da natureza de seu carisma negligenciaria essa missão. Eva foi amada por sua obra e pela maneira como a representava.
“Vesti Eva Perón no começo de minha carreira e depois, por alguns anos não a vi. Começou a se vestir em Paris.” A citação é de Paco Jaumandreu, o primeiro costureiro de Evita. O ofício de Jaumandreu exigia não só destreza e imaginação, mas habilidade mundana. Sabia responder aos arrufos temperamentais de mulheres carismáticas.
Evita precisava retocar sua imagem um pouco banal, potencializando suas qualidades (a estatura, as pernas e braços longos, os dentes bons, o cabelo bonito e a pele perfeita, a regularidade nada vulgar do nariz, o perfil fino, a vibração deslumbrante da pele). Jaumandreu foi uma peça da máquina que montou o espetáculo que, pouco depois, seria de extrema originalidade. Mas quem teve a idéia de aperfeiçoar a imagem de Evita Duarte foi Perón. “Eva Perón é um produto meu. Preparei-a para que fizesse o que fez.”
Jaumandreu conta em suas memórias, a primeira visita que fez ao guarda-roupas de Eva: “Fez-me passar a um quarto de vestir que tinha dois armários. Entre os dois estendia-se uma barra grossa da qual pendiam casacos de pele, longos e curtos, raposas prateadas, raposas azuis, lontras. Fiz com que visse que peles daquele tipo eram para figuras de segunda classe e que estavam démodé. Sorriu. Seu sorriso era cativante, iluminava-a. Pediu-me tecidos e desenhos.”
Afastou-a dos ostentosos casacos de raposa e dos tecidos drapeados, que evocavam os típicos presentes masculinos recebidos em troca de favores. Deu a Eva o look ultramoderno, aquele look Garbo de Eva trabalhando como uma Ninotchka do peronismo. Por motivos que provavelmente tiveram a ver com Jaumandreu, Eva conseguiu um estilo límpido e anguloso, que hoje parece menos contaminado pelo rebuscado um tanto pegajoso da moda feminina do pós-guerra, até mesmo da criada pelos melhores figurinistas internacionais.
Jaumandreu desenhou a roupa correspondente ao corpo político de Eva Perón: o tailleur príncipe-de-gales, com gola de veludo escuro, vestimenta oficial de Eva. É um traje público, tanto quanto os vestidos de baile enviados pela casa Dior, com os quais Eva posava para as fotografias oficiais coberta de jóias, envolta em sedas, crepes e cetins. Quando se veste a rigor, as roupas são tão sobrecarregadas e as jóias tão espetaculares que quase não podem ser julgadas em termos de moda, e sim em termos de construções arquitetônicas sobre um corpo alegórico: o do poder peronista. Vestida a rigor, Eva é a peça coroada de uma cenografia do poder.
Uma foto feliz mostra Eva de tailleur escuro, de corte perfeito, com um grande escudo peronista de pedras preciosas na lapela (essa foto, de perfil, com as mãos abertas e os braços esticados, o rolo de tranças recortado contra a escuridão, o cabelo liso e brilhante puxado na nuca pálida, a linha de aço do microfone que acompanha o movimento do corpo, percorreu a Argentina durante décadas).
Outra foto feliz, a do carro iluminado que conduz Eva a sua casa, noite avançada, com a Torre de los Ingleses ao fundo como testemunha, mostra o chapéu que Eva usou apropriadamente com o tailleur, um chapeuzinho redondo, de aba pequena, pied de poule, e faixa escura em torno da copa achatada, combinando com a gola do casaco.
O estilo de Eva não foi uma qualidade que se acrescentou, mas um dado central de sua personalidade política, fundada em valores insólitos e excepcionais. Dava corpo a um novo tipo de Estado, o que se poderia chamar de “Estado de bem-estar à criolla”, e consolidava um ritual absolutamente necessário a esse Estado, que tinha o ímpeto fundador e a fraqueza institucional de todo regime novo.
Eva Perón foi fundamental na ritualização política do peronismo e na distribuição de bens e serviços aos pobres, instrumentos que, utilizados em uníssono, produziram uma identidade forte. Ela era a sustentação material dessas duas dimensões, social e cultural, da política peronista. Por isso, o corpo presente e Eva foi tratado e revestido com todo o cuidado que o caso exigia. Sobretudo, devia-se aproveitar esse suplemento incalculável representado pelo estilo, que se transforma em beleza, e pela juventude.
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