terça-feira, 30 de abril de 2013

A primavera sempre chega (uma crônica de Sonia Bonzi)

“Não há mal que sempre dure, 
Nem bem que não se acabe”.
A primavera sempre chega, diz o provérbio chinês. 
Aqui chegou. Já não faz tanto frio. Liberto-me do peso de casacos, cachecóis, luvas e botas. Revejo meu corpo. Sinto compaixão em vez de ódio. Estou mais leve e a agressividade vai se amansando. 
Não mais dependo de bonde para me locomover. Um Peugeot 504, vermelho, me leva para onde quero. Tenho intimidade com a cidade, sei localizar bairros, avenidas, ruas, praças, parques e fontes.
 As janelas no telhado deixam entrar a luz do sol que cada vez brilha com mais intensidade. Os dias estão mais longos. Os bares começam a colocar mesinhas do lado de fora. As tulipas brotam, as árvores ressuscitam, as ruas não têm mais neve.
As pessoas continuam intolerantes, impertinentes, mal-educadas... Assustadoras. Já não faço caso delas. Vez ou outra, um grilo, mas sinto algumas conquistas comportamentais. O alemão já não soa tão incompreensível. Alguns palavrões já falo sem muito sotaque. Na realidade, acho que me aprumei. Tomei pé. “Cara feia pra mim é fome”, como diz meu pai. Evito situações que me possam desestabilizar.
tela de Edward Hopper
 Não toco nas frutas, não pego nada para olhar sem que me seja dado nas mãos. Lembro-me de contar quantos pãezinhos comi, tomo café só com a pedrinha de açúcar que me dão. Evito, na medida do possível, minhas gargalhadas debochadas, meu gesticular espaçoso... Vou aprendendo a ser mais contida. Quando vou à Itália, me esbaldo.
Frau Jelinek tornou-se personagem importante em minha vida. Anda sempre vestida com um “dirndl” vienense, a exibir os seios de 73 anos, apertados por um espartilho.

Não foi fácil nosso primeiro contato. Tínhamos contra nós a barreira da língua e seu avançado estado de surdez. Uma vez por semana, nos vemos, quando ela vem à minha casa passar a roupa. Com ela aprendo um pouco de “Wienerish”, dialeto vienense do alemão. Ein, zwo... A ela não interessa se a entendo ou não. Fala, conta histórias, gesticula, escreve palavras nos papéis, mostra artigos de revista, horóscopos... No começo eu falava umas frases em português, só para mexer a boca. Ela não ouve nada, descobri. 
Com o passar do tempo fico mais curiosa. Junto o aprendido nas aulas de alemão com o que ela fala… Quando o assunto parece mais interessante, olho as palavras no dicionário, para desvendar o tema da conversa. 
Nossa amizade aprofunda-se. Frau Jelinek é uma fonte de novidades nesta terra de gente fria e distante. 
Sobrevivente da Primeira e da Segunda Guerras, depois de passar a roupa, senta-se comigo e fala de suas lembranças, seu modo de ver o mundo. Diz que a II Guerra não foi de todo ruim. As pessoas ficavam mais animadas, mais soltas, viviam o presente, descompromissadas com o porvir.  Diz que ela não se preocupava: até gostava quando o som das sirenes anunciavam os bombardeios. Animava-se com a correria - uns para os abrigos, outros para os bosques de Viena.

 Ela ia sempre para o Wienerwald, esconder-se entre as árvores. Lá, sobre a relva, entregava-se a algum homem e fazia amor sem repressão: a busca de gozo sob a ameaça de morte. Encena o movimento dos cafés, dos soldados, dos bailes… Lembra da amiga de oitenta anos, que, no final da Segunda Guerra, quando os russos invadiram Viena, foi possuída por um jovem moscovita, sobre a mesa da cozinha. Feliz por recordar o que era sexo, encantada com o vigor do rapaz, a velhinha bendisse a Guerra enquanto viveu. Os olhos de Frau Jellinek faiscaram quando contou sobre a noite passada com um soldadinho francês, enquanto seu marido estava prisioneiro… 
Disse que os austríacos eram mais nazistas que os alemães, que Hitler foi recebido com mais entusiasmo em Viena do que em qualquer outro lugar. Lencinhos brancos tremulavam no ar.
Agora, que consigo, precariamente, me fazer entender em alemão, Frau Jelinek  apareceu com um aparelho para surdez. Disse que mandou fazer, mas só usa quando está aqui em casa. Tem horror aos barulhos da cidade, às conversas de bonde. Quando, à porta, se despede, tira o aparelho, guarda na bolsa e sai pelas ruas, feliz da vida por não ouvir.

Viena, 1975
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outras crônicas de Sonia Bonzi em
redefurada.blogspot.com/2013/01/viver-em-viena.html
redefurada.blogspot.com/2012/10/como-e-vida-de-um-diplomata.html

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