quinta-feira, 18 de abril de 2013

terapia de casal

Não sei porque você decidiu contar-me sua história justamente hoje. Notei sua presença quieta sob a sombra da amendoeira, ao lado  do quiosque dos argentinos de Córdoba desde o momento que chegou na praia, por causa da criança. Sua história me fez lembrar  outro conto de casal que guardo na memória há dezenas de anos
Foi assim:
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 Acordei numa São Paulo chuvosa, com o vento batendo forte nas portas internas do apartamento, entortando os galhos das raras árvores ao redor do prédio. Pensei que o dia era de médico -- que tédio.  Peguei um livro da estante para ler no  consultório e não precisar me submeter às  revistas maçantes que oferecem aos pacientes -- a "Veja", "Caras", "Ricos e Famosos" e que tais.
Fui de táxi até chegar no sobradinho de dois pisos em tijolinhos aparentes,  no bairro do Paraíso.
Consultório de um casal de médicos: minha consulta era com o marido.
  Aguardei minha vez até ouvir uma voz firme chamar meu nome, vinda do alto da escada. Subi os degraus devagar: só havia uma criatura à vista,  um homem sério, todo de branco, sua calvície me aguardando na porta de uma sala pequena, com uma ficha de listrinhas na mão -- acho que tinha meus dados pessoais, idade, local de nascimento, endereço.
Bem... vou omitir nomes e lugares reais, além de trocar ligeiramente as circunstâncias, já que a história é verídica -- e a palavra solta pode percorrer caminhos inesperados.
 -- A senhora nasceu na mesma cidade que minha mulher.
Supreendi-me: uma cidade pequenina de Minas Gerais. Coincidência.
-- Sim.. foi lá que nasci.
Ele conhecia a cidadezinha, compartilhamos prazeirosamente informações e memórias. Pegou o interfone para falar com a mulher que atendia no consultório contíguo ao dele – "como é mesmo o nome do colégio que você estudou?".
Claro que era a mesma escola que eu frequentara: era o único colégio do lugar.
Na saída da consulta comecei a descer os degraus da escada quando uma súbita curiosidade me fez voltar a cabeça para olhar o nome escrito na plaquinha pregrada na porta do consultório da conterrânea.  Parei no segundo degrau, estupefata. Reconheci imediatamente o nome e o sobrenome: só podia ser ela. A memória explodiu em dados, não posso afiançar se são precisos, a memória é um mistério movediço.  Mas com certeza aquela mulher era a protagonista da trama amorosa mais famosa de minha cidade natal -- dezenas de anos haviam passado e ainda se falava nisto. Um casal de médicos notável, pela beleza, poder econômico das respectivas famílias, inteligência. Estavam noivos, o  casamento sendo preparado devagar, um exagero até, completaram dez anos de noivado.  A maledicência apregoava que de noivado longo não sai casamento.
Estavam certos os comentadores da vida alheia;  um triângulo amoroso já se instalara.  Havia outra mulher desejando o doutor, uma estudante de arquitetura esguia, cabelos escorridos e com tinta; eu olhava para ela e lembrava da garota de Ipanema. A gente se conhecia, éramos foliãs do mesmo bloco de carnaval.
Lembro até das fantasias criadas naquele ano, a de saci pererê e a de escrava grega curtinha, com correntes douradas nos tornozelos. Na última noite do carnaval, a garota de Ipanema fugiu com o noivo da outra -- não era um noivo qualquer, era um noivo de dez anos!
Só se falava disto nas conversas prosaicas do dia-a-dia:
-- De escrava acorrentada, na noite de núpcias!
Casaram-se, os fugitivos.
Nunca soube o que acontecera com a noiva abandonada até ver o nome dela em letras brancas na plaquinha de frio metal azul.  Senti a revoada do tempo me arrastando para fora do presente.
Fiquei ali parada, do lado de fora do consultório, atordoada, pois junto com a trama do trio amoroso, chegaram outras memórias, à moda de Proust, do bolinho "madeleine"  esparramando fios de lembranças esparsas por todas as veias da alma. 
As histórias de amor sempre me comovem.
Mesmo as malfadadas.

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