sexta-feira, 17 de setembro de 2010

a morte do Gago

Acordei cedo para a última despedida do Gago.  O corpo dele passou a tarde e a noite de ontem deitado no bar da Cabana Nativa, o local escolhido pela família e amigos dele para  a função do velório.  Gago morreu devido a um AVC fulminante que o atingiu quando se preparava para deixar Santo André por uns tempos – havia conseguido trabalho em Trancoso. Estava satisfeito com a oportunidade de trabalhar e poder ajudar  Marta na dificílima tarefa de criar os filhos quando se é pobre. Não deu tempo: o corpo de Hélio – seu verdadeiro nome – alquebrado pela doença do alcoolismo, não resistiu muito.  Como de costume  nos velórios do povoado, muita gente passou para velar o Gago, os meninos e as mulheres, os amigos do copo, os vizinhos e conhecidos.  Pequenos grupos se formaram, mas sem aglomeração ou balbúrdia. As pessoas se espalharam pelos grupos de cadeiras, pelos quatro cantos da esquina, ou ao longo das estacas das cercas-vivas de cafezinho.  O fundo sonoro era o som  discreto das conversas que percorreu toda a cerimônia. Bem, não houve cerimônia tradicional, assim como padre ou velas.  As pessoas compareceram para se despedir do morto com muita naturalidade.  Sem histeria, sem hipocrisia. Tanto que o caixão do Gago foi postado em cima dos engradados de cerveja, no meio do bar, e com todo o respeito. O único adorno fúnebre era um tecido leve e transparente, uma gaze de trama fininha que envolvia  a parte de baixo do caixão (doado pela prefeitura). Havia flores, como sempre, no caso do Gago eram de buganvília lilás.  Lucas, companheiro de gole do Gago, pediu em voz alta para ele não tomar todas no céu – o certo seria deixar algumas reservadas para a chegada póstuma dos amigos. Uma das coisas que gosto aqui na Vila é que todos são cidadãos – mesmo os que se perderam na bebida.  O povo do vilarejo é sábio, nota que a morte não faz distinção, nem de cor de olho, nem de fundo de bolso. Você pode ser um ornitorinco, uma pulga listrada ou um gênio do xadrez. Tanto faz. É zaz-trás. Cuidaram de arranjar o ônibus escolar para transportar o cortejo funerário até o cemitério em Santo Antônio, porque cemitério é outra coisa que aqui no Santo André não tem. Aqui se morre mas não se enterra.
Olha só como a realidade e a ficção (as irmãs siamesas) gostam de bagunçar nosso tirocínio. Ainda em São Paulo, no começo da semana, havíamos decidido exibir o filme “Quincas Berro D’Água” na sessão do Cine Cajueiro desta semana (amanhã, sábado). O enredo, baseado em Jorge Amado, é bem conhecido: um determinado fulano, cansado de ser funcionário público decide largar tudo e cair na farra,  ganhando fama como Quincas Berro D'Água, o rei da boemia. Quando aparece morto, a família resolve apagar os traços da fase da arruaceira e lhe dar um enterro respeitável. Só que seus amigos  roubam o corpo e o levam para uma última noite regada a festa e muita bebida. Em meio a mil confusões, Quincas “vive” a sua segunda e definitiva morte, desta vez como sempre sonhou. G

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