sábado, 11 de dezembro de 2010

a vida sem tecnologia

Há dois anos, estava prestes a atravessar a encruzilhada formada pelo risco de minha rua e de outra transversal, quando minha bicicleta quase se chocou com o carrinho de mão que vinha sendo empurrado por um jovem nativo de Santo André. Naquela hora o humor dele se aproximava perigosamente de um nível explosivo – depois soube que acabara de receber uma notícia ruim e estava aborrecido. O fato é que desabafou na primeira pessoa que viu pela frente – eu.  Agitado, enumerou  em tom alterado todas as mazelas trazidas para o povoado pela "civilização": os carros, as motos em desabalada carreira, os aparelhos eletrônicos, as roupas, o desejo do consumo, as mudanças de comportamento...
Na visão dele, nós (os não-nativos) fomos os responsáveis pelas transformações que desabaram em cima deste povoado nas últimas décadas. Antes (não sei quanto tempo era “antes”),  os terrenos pertenciam aos seus ancestrais, as casas não tinham cercas, os banheiros eram na mata, o peixe e os frutos do mar eram fartos, a caça também...
Vão embora. Deixem-nos sozinhos.
No primeiro momento aquele homem me pareceu ingênuo ("será que ele não notou que uma inexorável globalização se encontra em curso?"). Mais tarde, depois de refletir um tanto, percebi sua lucidez.
Lembrei deste incidente ontem, ao ler  um texto bom, de uma psicóloga que trabalha na periferia pobre de Brasília (chama-se Ana Janaína), de onde retirei estes excertos:
------------
“Assim, se aproximar de uma comunidade pobre é como chegar a um país estrangeiro. Apesar de falar sua língua, sou eu quem não entende seus costumes, especialmente quando estes costumes são fatais: as rixas, as guerras, as mortes. Sei que não há sorrisos à toa, choros à toa ou caminho à toa, mas não sei para onde vão. E, mesmo com os “poderes” do Estado ao meu lado, sou vista muitas vezes como uma visita incômoda ou como francamente inimiga e, nestas horas, me falam numa língua de segredos, cheia de reticências.
A dificuldade é transformar a assistência social em mudança de condições de vida e cidadania. E tudo isso sem nunca, nunca, tomar uma posição de comando, de poder paternal sobre o outro, de “catequização” e “orientação”.
Lembro-me do texto de Manoel Berlink  em que ele relata a tentativa de levar um atendimento psicológico a crianças em situação de rua, público extremamente refratário aos vínculos, no começo nos anos 1980. Assim que chegam à favela, o grupo de psicanalistas é batizado de “gringos”, o que os diverte um pouco até descobrirem que “gringo” é o cliente da boca-de-fumo que dá bandeira, que chama a atenção.(...)
Às vezes, sinto que ainda sou “gringa”; que, acompanhando uma família ao hospital ou um adolescente à escola, há algo que destoa na minha presença ali. Não renego esta estranheza – não estou à procura de identificações imaginárias ou de empatias vazias. Acho que é possível falar deste terreno estrangeiro onde me encontro, é possível escutar exatamente a partir da minha estranheza, aceitando a diferença do outro, pedindo que aceite a minha.
Então, às vezes, no fim da tarde, recebemos uma ligação de uma mãe ou de um adolescente, que nos procura, que quer ser ouvido. E sinto que, talvez, iniciamos uma transição, que conseguimos criar um lugar no imaginário desta comunidade, um lugar que se associa à possibilidade de cuidado, apesar de toda a diferença. "

Um comentário:

Léa Penteado disse...

Que ótima reflexão...ja mudei tanto que me sinto eternamente gringa...