sábado, 26 de março de 2011

Ródtchenko e o mundo pictórico de Paula Rego

Não está claro se o painel na entrada da Pinacoteca é um convite aos curiosos ou um pedido de socorro – entrei para ver uma retrospectiva do fotógrafo russo Alexandr Rótdchenko,  e agradeço aos curadores o prazer de um passeio visual estupendo:  bem em frente aos meus olhos estavam algumas fotos célebres, como o retrato de sua mãe com os pequenos óculos redondos (um registro pungente, ela aprendeu a ler tardiamente), composições urbanas perfeitas como “ Degraus” ou retratos do poeta Maiakovsky.
Diagonal de degraus, Ródtchenko. Abaixo, Maiakóvski (" Desatarei a fantasia em cauda de pavão num ciclo de matizes...)"
A Pinacoteca, mesmo passando por uma reforma no segundo andar, é um espaço tão lúdico e bonito! Sair clicando o próprio prédio é brincadeira irresistível...
Depois de ver as obras de Rodchenko, perambulei ao léu até parar na entrada desta sala. (abaixo). Como a porta estava aberta, dei uma espiadela na pintura que parece estar sendo indicada pela seta.  Fiquei estatelada, foi um caso instantâneo de atração fatal. Quem seria esta pessoa capaz de passar uma força tão poderosa usando apenas pincel e tintas?
As escrituras dos painéis informam: Paula Rego, portuguesa radicada em Londres uma das “artistas-chave da atualidade.”  Não sei dizer se Paula é uma das grandes artistas do século, mas é óbvio que se trata de uma genial contadora de histórias, todos seus quadros parecem falar de tramas, enredos intrincados e demostram uma imaginação extraordinária.
as irmãs Papin
Mas voltando ao quadro da entrada – seu título é “As criadas” e diz respeito a um notório caso de assassinato ocorrido na cidade francesa de Le Mans, na década de 1930. O caso das irmãs Papin teve grande repercussão na França. Foi até o tema da tese de doutorado de Lacan (“Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”)!  Além de ter sido objeto  de cinema (“Entre elas”) e de várias outras obras de arte, como esse quadro de Paula Rego.
Eram três irmãs. Abandonadas pelo pai e vítimas de descaso materno, as meninas tiveram infância dolorosa.  Uma foi para o convento;  as outras  trabalhavam no serviço doméstico de residências burguesas.  Durante 7 anos trabalharam como criadas na mansão de um rico advogado,  sua mulher e filha. Christine e Léa eram consideradas empregadas-modelo e de tal modo se tornaram imprescindíveis que seu comportamento bizarro era aceito pelo senhorio.  Não havia qualquer tipo de comunicação entre os rígidos patrões e a as moças, somente ordens que eram obedecidas em silêncio. Nas folgas, as irmãs se recolhiam ao quarto que dividiam, partilhando a mesma cama. Trocavam delicadezas femininas entre si, camisolas de renda, bordados.   O advogado ficava bastante tempo fora de casa. A tensão se acumulava entre os dois pares femininos. O comportamento psicótico das criadas é desatrelado após um incidente banal com a eletricidade da casa (um curto-circuito). Léa passa uma peça de cetim da senhorita e a blusa é queimada.
" A filha do polícia"
O que houve depois? Transcrevo as palavras do  famoso psicanalista e psiquiatra argentino Juan David Nasio, em seu  livro “Os grandes casos da Psicose”,  de 2001:
   "Quinta-feira, 2 de fevereiro de 1933, na cidade de Le Mans, província de Sarthe. São cerca de vinte horas; a polícia municipal é chamada à residência de René Lancelin, que não havia conseguido entrar em sua casa, arromba a casa do antigo procurador e, no primeiro andar, encontra a Sra. Lancelin e sua filha assassinadas, com os corpos pavorosamente mutilados e os olhos arrancados das órbitas.
No segundo andar, refugiadas num canto da cama e agarradas uma à outra, as duas empregadas exemplares, Christine e Léa Papin, confessam sem dificuldade haver cometido o duplo assassinato de suas patroas - patroas irrepreensíveis, segundo suas palavras. Um simples incidente insignificante, a propósito um ferro de passar com defeito e de um fusível queimado, parecia haver desencadeado a carnificina sangrenta
".
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Ao término da mostra – são 110 obras que traçam uma narrativa visual da condição humana -- abri a porta de saída e procurei imediatamente uma cadeira para sentar...
O que é mais perturbador,  a vida ou a arte?

2 comentários:

Guiomar disse...

Incrível, não, Olímpia. Fui à Pinacoteca para ver a geometria, as diagonais, os grandes planos de Ródtchenko. Mas... também me deparei com Paula Rego e sua pintura arrancada à fórceps da vida - ou do sonho. Surreal e real. Adorei.

olimpia disse...

Adorei sua definição da obra da portuguesa... "arrancada à fórceps da vida ou do sonho."
Nunca mais vou olhar para a Branca de Neve do mesmo jeito que antes
bjs