sábado, 22 de agosto de 2009

O ateliê de literatura da Asa Norte de Brasília



Num dia incerto de 2001, avistei um número de telefone e as palavras curso de literatura escritas numa fina tira de papel meio-escondida na barafunda dos anúncios colocados no mural da Universidade de Brasília.
No mesmo dia, disquei – quem atendeu foi a Fabrícia.
Na mesma hora me interessei.
Passei a dica para alguns amantes da leitura.
Logo nos agrupamos e fomos para a primeira aula, achando que íamos tirar o curso de letra: um professor tão jovem, ainda terminando a graduação...
Logo percebemos que, dos livros, a gente só conhecia as orelhas – no máximo, o prefácio.
Enquanto o professor era uma enciclopédia: um Google literário.
Foi naquela sala de mesa quadrada que viajei para Tróia e para Dublin pela primeira vez. Sempre pensara em por meus olhinhos míopes naqueles clássicos livros dos homeros, dos sófocles, dos james joyces, mas não animava: faltava um Piero no meu caminho.
Foi naquela sala que o grupo foi crescendo em número, em amizade, em qualidade de páginas lidas ou escritas.
Viajamos muito, às vezes, até literalmente. Estivemos juntos na comemoração do Bloomsday em São Paulo. Na Festa Literária de Paraty. Na exposição de Grandes Sertões: Veredas, a primeira do Museu da Língua Portuguesa do Parque da Luz, em São Paulo.
Bebemos como dublinenses em dia de São Patrício.
Depois eu vim morar na Bahia e tenho agora outro grupo de leitura.
Mas do primeiro a gente nunca esquece.
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Hoje de manhã acordei com o som forte da chuva e do vento zunindo.
Sempre que vejo essa cena num filme imagino que é presságio visual para notícia triste.
E era: chegou em forma de email, desse incrível professor, agora portador de outros títulos, inclusive de pê-agá-dê.
Coloco aqui, neste caderno de rascunhos, porque faz parte de minha vida.
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“É com enorme pesar que escrevo a vocês esta despedida. Um tchau calmo. De serenidade. Pensado e matutado. Discutido e refletido. Foram 8 anos... e muita coisa aí aconteceu.
Desde 2001, quando ainda estávamos terminando a graduação, a Fabrícia e eu decidimos montar esse Centro de Estudos Literários Edgard Belair (como se chamava então). Muita, muita dificuldade marca esse início, mas também já estávamos marcados pelo trabalho, pela amizade que se construiu desde o primeiro telefonema-sorriso da amiga Olímpia.
Enfim, o Ateliê nos ajudou a crescer, nos viu crescer, amadurecer, casar, tornarmos profissionais de fato quando ainda éramos apenas jovens. Sem dúvida devo muitíssimo às incursões de pensamento que elaboramos durante todo esse tempo. Devo muito do que sou hoje a cada um de vocês que me permitiram ver que não era absurdo ter uma proposta, ter um ideal de compartilhamento de sensibilidades. Mas, sobretudo, o que quero guardar na memória é como, além de todos os deslocamentos metonímicos e epistemologias literárias, essa carga imensa de amizades que construímos e nos une cada vez mais. Da posição desconfortável de professor (e também daquela de alunos) conseguimos criar vínculos de mútua admiração e, com certeza, duradouros. (...)"
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"hoje, não ontem,
hoje, não depois,
hoje marca o fim
todo o jogo, de si,
abandono - ao raro
sensível do tempo -
da conversa mais
í n t i m a:
apenas um suspiro,
plural lamento,
em que continuo
o elogio a todos
um brinde -
recife, solidão, estrela."
(poema de Piero Eyben)
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Um comentário:

piero eyben disse...

não imagino a história sem vocês dois...
não há forma, verossímil, sem esse escândalo de alegria e sensibilidade que são vocês dois...
não tenho na ideia nada que não possa compartilhar, tecer e construir como ensinaram vocês dois...
espero que, além do presságio, seus olhos ainda possam continuar a ver l'azur terrível das letras, dessas gotas envenenadas...
o peso da perda sinto-o fortíssimo - como todo fim - aliás como a gente vê uma tragédia que sabe que vai sofrer ao final.
a desolação se conforta com essas viagens dublin-paulistanas, lago-fluminenses...
fazer parte da vida... acho que vocês dois não são apenas parte, mas o próprio fio que a costura - sem ele há buraco -, o enredo (bonito) que posso rememorar, todo o tempo.
e, se há o vermelho, é que de fato sangra...