quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Um texto de Sonia Bonzi

Soninha é uma amiga que conheci em Brasília tempos, tempos, atrás. Ela escreveu este texto para a revista eletrônica NovaE. Versa com sensibilidade e discreta emoção sobre os diversos países onde morou com o marido e os filhos -- sempre em mudança como ocorre com a vida das famílias dos diplomatas.
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"Em minha vida errante evito fazer comparações. Temo que as lembranças fechem meus olhos para novas realidades. Algumas vezes, entretanto, quando o passado se torna novamente presente, repasso os anos, os lugares, as pessoas, e comparar se torna inevitável.
 Hoje passo a vida em revista.
Viena ressurge com suas proibições e intolerâncias. Primeiro e aborrecido mundo, cheio de velhos solitários e cachorros. No imaginário dos amigos que viviam no Brasil eu estava no paraíso, no mundo civilizado. Viena das óperas, valsas, dos bosques, dos filmes de Sissi, a Imperatriz. A minha realidade era outra. Muitos sobressaltos. A todo momento corria-se o risco de levar uma bronca, de ser acusado de algum mal ato. Nunca me senti tão peixe fora d’água. Tudo muito exótico para minha alma jovem e brasileira.
Quando fomos morar em Praga, na Tchecoslováquia, causei preocupação aos parentes e chegados. Que iríamos fazer em um país comunista, onde "criancinhas eram devoradas"? As informações que chegavam ao Brasil vinham nas páginas da "Seleções do Reader Digest", pela Voz da América e pela nossa imprensa anticomunista... Que bom foi viver aí!... Quantas pessoas adoráveis faziam parte da nossa vida, quantos passeios maravilhosos fizemos pelas montanhas e bosques. A bandeiras russas tremulavam por todos os lados. Slogans comunistas poluíam as cidades, mas o espírito do povo era outro. Segurança total. Durante o inverno, os carrinhos de bebê ficavam do lado de fora das lojas enquanto as mães faziam compras. Se algum choro de desconforto chegava aos ouvidos dos transeuntes, havia sempre um que interrompia o caminhar para consolar o nenem chorão.  Nada a ver com os vienenses, que tinham alergia a crianças.
Quando, em nova fase, fomos morar em Nova Iorque, encontramos o esperado e o que vivíamos correspondia ao que nossos amigos imaginavam. Foi sensacional sentir, pela primeira vez, que eu morava numa metrópole. Não me deixei seduzir pelo chique apertado de Manhattan e me deliciei com a vida no subúrbio, onde espaço não nos faltou. Por conta dos filmes americanos muita gente se arrepiava quando eu dizia que morava no Bronx. E era calmo, quase como viver em uma cidade pequena. Conhecíamos os vizinhos, os filhos caminhavam sós para a escola.
Nada mais de Europa ou Estados Unidos. África do Sul foi o próximo destino. Pretória em ebulição. As leis do "apartheid" iam sendo abolidas. Nas ruas muito massacres encomendados pelos brancos que não aceitavam mudanças. No espírito dos negros a esperança de dias melhores. Causávamos preocupação cada vez que uma atrocidade era grande o suficiente para ser notícia internacional. Levávamos vida calma, sem muito medo. Íamos a festas em Soweto, viajávamos de carro para todos os lados. Conseguimos fazer festa onde negros e brancos dançavam juntos na sala.

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Necessitados de um tempo à beira mar, Sidney, na Austrália, nos pareceu boa opção. O outro lado do mundo: Down Under. Os australianos são os melhores marqueteiros do mundo. O oposto de nós, brasileiros. Jamais perdem uma oportunidade de valorizar o que é seu. As primeiras páginas dos jornais não trazem notícias que desabonem o país. Os produtos nacionais carregam as etiquetas :"Proudly made in Australia". (Orgulhosamente feito na Austrália). Cidade de 50 anos é chamada de Cidade Histórica. Os objetos expostos nos museus fizeram parte da minha infância. Uma pequena corredeira pode ser tratada como cachoeira. A indústria turística vende gato por lebre.A natureza é agressiva: bichos venenosos estão na terra, no mar, no ar. Durante a seca as queimadas causam pânico. Encontrei aí uma sociedade formada por guetos. Nada de multi-cultural com propagam. Multi-guetos é o que há. Juventude selvagem. Festas de jovens eram sempre invadidas por vândalos, delinquentes juvenis.  
Saímos do estranho sotaque inglês dos australianos para dar com os costados em  Londres e curtir o Inglês da rainha. Aí foi como Nova Iorque. Nenhuma grande novidade. O que se fala é o que se vê. O que se espera é o que se tem.
A notícia da ida para o Irã causou frenesi. Gente que não dava o ar da graça há muito tempo escreveu apavorada recomendando cautela, chamando-nos de loucos. Muitos confundiam com o Iraque. Que hão de querer fazer no meio da guerra, dos terroristas, dos homens-bombas, no Eixo do Mal, se perguntavam. Um tempo de colheita em nossas vidas. Assim como não vimos criancinha ser comida na Tchecoslováquia, não nos encontramos com nenhum terrorista no Irã. Experimentamos uma segurança que desconhecíamos. Nada de roubos, de assaltos, de balas perdidas. Nada de fome, de miséria, de assassinatos com arma de fogo. Apenas a insatisfação calada de muitos, tal qual em Praga nos anos 70. Lindo tempo de convivência pacífica.
 Guatemala é a bola da vez. Ninguém se preocupa conosco. Ninguém conhece. O lugar mais próximo do Brasil onde já vivemos parece o mais distante. Nada se sabe sobre o país. Alguma coisa se fala quando os desastres naturais se tornam calamidade. Do que se passa não fazem a menor ideia.
 Aqui corro perigo de vida. A natureza é violenta: terremotos, vulcões, chuva de areia, tempestades, crateras que se abrem no meio das ruas e engolem prédios e gente. A insegurança  é total. A criminalidade reina. O número de armas nas mãos de civis é incontável: restos da guerra civil que durou mais de 30 anos e acabou há menos de 20. Linchamentos, estupros, degolas. A novidade no momento é encontrar cabeças, braços ou troncos em frente a monumentos públicos. Motoristas de ônibus assassinados - já se perdeu a conta: mais de 200 nos 2 anos em que estou aqui. A subnutrição aniquila 49% das crianças. O femicídio, que consiste em matar mulheres, às vezes, com requintes de crueldade, é condição para se ingressar no crime organizado. Políticos e policiais envolvidos nos crimes - faz parte da realidade. Grande é o poder da "Opus Dei". As mulheres ricas seguem os ensinamentos de Cristo e fazem caridade, mas com migalhas. Os jovens da elite vão estudar nos States e desconhecem o próprio país. Escondem-se por trás dos muros, das câmeras de segurança, dos vidros blindados de seus carrões importados. Passeiam nos shoppings com suas armas ocultas sob o blazer e são sempre seguidos por seguranças. Sentinelas armados com escopetas, metralhadoras, fuzis, AR-15 estão nas portas das lojas, das farmácias, dos prédios públicos, das casas particulares, cinemas, boates... Assaltos, sequestros, assassinatos, linchamentos, roubos são diários... Não é aconselhável que eu caminhe só nem pelas ruas do bairro de classe média alta onde moro. E ninguém pensa em mim, ninguém reza por mim e sinto saudades dos tempos em que no Irã eu era foco de atenções.
  A América Central não existe para nós, nem para nossa mídia. "
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a foto também é da Soninha (obrigada!)

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