domingo, 31 de janeiro de 2010

memórias de Madeleine

"E de repente a recordação surgiu-me. Aquele gosto era o do pedacinho de madalena que em Combray, ao domingo de manhã (porque nesse dia não saía antes da hora da missa), a minha tia Léonie, quando lhe ia dar os bons-dias ao quarto, me oferecia, depois de o ter ensopado numa infusão de chá ou de tília."
Estas linhas se estenderam aos meus olhos ontem, no domingo de manhã. Já passei por elas antes, pois qualquer que goste de ler um pouquinho sabe de antemão que se trata do livro Em busca do tempo perdido. Como tenho cá dentro minhas próprias madalenas, o pensamento me arrastou para um episódio que vivi no agreste durante uma longa viagem de carro pelo Nordeste brasileiro, no caminho dos Lençóis Maranhenses. Estávamos atravessando o interior do Rio Grande do Norte, uma cidadezinha após a outra, quando, de dentro do carro, avistei um carnaubal carregado de frutos pequenos, negros e redondos. A visão daqueles cachos nas palmeiras me inundou de reminiscências ligadas à infância: de como eu gostava de comer aquelas frutinhas e tomar banho naqueles rios pulando daquelas pontes e das presepadas que a gente aprontava para ser a primeira a encher o cestinho com os frutos escuros ou para dar salto mortal sem deixar o maiô escorregar.
Naquele instante me lembrei da Madeleine proustiana e me convenci em segundos de que se eu não provasse daquele fruto imediatamente eu perderia uma oportunidade ímpar de ter algum tipo de revelação interior. Falei isto para meu marido que olhou desanimado para a altura das palmeiras (pode chegar a 40 metros) e respondeu com um murmúrio descrente como é que a gente faz pra pegar. Por causa de minha insistência deixamos o automóvel parado na rodovia deserta e perambulamos um pouco por ali, não tenho idéia do tempo real nem de relógio ou ampulheta, só sei que a porta que dá acesso ao passado se abriu e consegui saltar décadas através das sensações fortes que me atingiram e me fizeram “ver” aqueles mesmos rios só que mais cheios d'água, e de como estava quente o dia da inauguração da ponte, e de como cheiravam bem os vestidos timão que as mães da gente faziam ou encomendavam às costureiras.
Voltamos para o carro e para a estrada sem conseguir nosso intento, mas quando paramos num vilarejo próximo para comprar água, Cláudio teve a idéia de oferecer uma pequena recompensa em dinheiro para quem conseguisse nos trazer carnaúbas – foi um delírio, parece que até o prefeito correu para a mata com uma latinha na mão. Esperamos um tempo, afinal a tarefa não era tão simples assim – os meninos foram voltando devagar, equilibrando as frutinhas em recipientes improvisados. Saí dali com o colo cheio de carnaúbas, agora era só provar e esperar pelas revelações, já pensou quantos anos de análise poderiam ser poupados? O anticlímax se deu quando nada aconteceu, ou pior, eu detestei o sabor da frutinha, a coisa era intragável, com um gosto horrível de cera, de onde que eu tirara a idéia que aquilo era gostoso? Fiquei com a maior vergonha de revelar isto ao companheiro, então fui digerindo algumas com muita dificuldade até admitir que se eu persistisse naquela refeição iria acabar com indigestão, melhor confessar tudo e jogar aquela porcaria insípida no lixo.
Então até hoje eu pensava que minha busca do tempo perdido tinha sido em vão até que me surgiu outra passagem do romance do Proust, já no final desta longa obra, quando Marcel se dirige para a casa da princesa de Guermantes e, ao entrar no pátio da residência, pisa na calçada de pedras irregulares – a sensação causada se liga à outra, muito parecida, que ele sentira quando pisara sobre dois azulejos irregulares no batistério da igreja de São Marcos anos antes e esta memória involuntária resgata das profundezas adormecidas de sua memória uma lembrança imediata que faz Veneza surgir à sua frente com toda sua atmosfera e luz.
Foi então que compreendi que no episódio das carnaúbas eu pude sim, recobrar os dias escoados, assim como em outras ocasiões, como quando a gente é apresentada a uma pessoa e tem a sensação de que já a conhece ou passa por uma rua até então desconhecida e ela parece familiar. O detonador da memória involuntária –a única que permite revelar o nosso âmago, a essência da nossa vida – pode ser uma cor, um cheiro, uma textura qualquer que não necessariamente precisa ser embebida em chá.
E é bem mais reveladora que a memória da razão ou percepção associativa.

Nenhum comentário: