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Sexta-feira à noite, em São Paulo City. Bem que tentamos, mas as reservas no restaurante escolhido para o jantar estavam esgotadas. Frustrados, telefonamos para outro lugar de comida e bebida que gostaríamos de conhecer. Inútil chamada, não havia nem uma mesinha sobrando, por todo o final de semana. Peças de teatro ou espetáculo musical mais procurado? Fica difícil, se for decisão de última hora. São Paulo exige planejamento, logística, caso contrário você pode acabar na frente do computador atualizando seu email (ou tuitando, ou...)
Foi o caso, ontem. Desisti de procurar alternativas para o Thank God It's Friday. Até porque passara horas cansativas na cadeira do dentista e outras mais no consultório do cardiologista. Essa função médica é particularmente presente quando estou em São Paulo, já que meu plano de saúde não cobre a região onde moro, na Bahia. Então quando venho para cá, faço checape de tudo. Fui procurar no arquivo do blog e achei posts mais antigos, de visitas a médicos paulistanos. Vou repeti-los....estão sintonizados com o momento.
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Quarta-feira, 18 de março de 2009.
Cheguei ensopada no saguão do prédio do meu médico. Dirigi-me ao balcão de identificação, passando a mão pelas gotas d’água que escorriam pelas mangas do casaco, disse onde queria ir e entreguei meu RG para o atendente magricela de terno cinza, óculos (e dentes) amarelados. Distraído, digitou errado o número da minha carteira de identidade no computador. Questionou o fato de serem apenas seis dígitos; expliquei que o documento era de Brasília e da década de 70, por isso a numeração baixa. Por fim, ficou tentando me convencer de que eu não era eu.
Cheguei ensopada e atrapalhada na catraca de acesso aos elevadores do prédio do meu médico. Provei que sou eu mesma, depois de digitado o número certo. Mesmo assim fiquei nervosa e deixei cair tudo das mãos: bolsa, guarda-chuva, a pilha de exames e o crachá de visitante.
Cheguei ensopada, atrapalhada e atrasada na sala de espera do meu médico. Ele estava mais atrasado do que eu: nem sequer havia chegado à clínica. Acho que é por isso que eles deixam a televisão ligada ininterruptamente, bem em frente às cadeiras onde nós, os pacientes pacientes esperamos. Naquele dia estava no ar o espetáculo de um circo oriental, monótono e hipnotizante – o principal arranjo da trilha musical era o som de sininhos de vento.
Saí ensopada, atrapalhada, atrasada e sonolenta do consultório do meu médico.
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O segundo post foi escrito em 9 de maio de 2009.
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Acordei com o barulho forte de uma porta batendo, dentro do apartamento. Olhei para fora, vi os galhos das árvores se torcendo incessantemente e escutei o delicioso zunir de uma ventania. Deu vontade de voltar pra cama, mas eu tinha consulta marcada. Era a primeira vez nesse médico, no entanto não tive dificuldade para encontrar o consultório, uma casa amarelinha, de dois andares, no bairro do Paraíso.
A sala de espera fica no andar térreo, no de cima estão os dois médicos, da mesma especialização, sendo uma mãe e o outro, filho.
Quando chamaram meu nome, subi os degraus para encontrar um homem vestido de branco, sorridente, com minha ficha na mão. Esclareço que omito nomes e minto sobre os lugares, pois a história é verídica, ou pelo menos tão verídica quanto permite a memória – uma fantástica ilusionista, como todo mundo sabe.
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-- A senhora nasceu na mesma cidade que minha mãe, disse, à guisa de saudação.
Antes da consulta, trocamos histórias e referências. Pelo interfone, perguntou à mãe dele – que atendia no consultório ao lado – o nome do colégio que ela havia estudado. Era o mesmo que eu frequentara, e só podia ser: era o único colégio bom da cidadezinha onde nasci, administrado por freiras da congregação “Filhas do Amor Divino”.
Quando saí da sala dele, olhei de relance para a plaquinha com o nome na porta do consultório da mãe, minha conterrânea. Parei ali mesmo, no segundo degrau, estupefata. Reconheci o nome e o sobrenome: só podia ser ela. A memória explodiu em dados, sei lá se precisos são. De qualquer maneira, o que lembrava era que na juventude, aquela senhora fora noiva de um homem bem conhecido na cidadezinha – faziam um par harmonioso. Não eram casados, mantinham um longo namoro, há mais de 10 anos. As pessoas, maledicentes, diziam que noivado longo nunca dava em casamento. Estavam certas...
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Num dia de carnaval, surgiu outra mulher, também do ramo da medicina, ainda não se formara, estudava no Rio de Janeiro. Mariana era bonita à beça, esguia, longilínea e de cabelos tão macios e brilhantes que a inveja das outras garotas era incontornável.
Nós brincávamos no mesmo bloco de carnaval, o “Simpatia é quase amor.” Lembro até das fantasias que vestimos naquele ano. No primeiro dia saímos de saci pererê – uma perna da calça vermelha e a outra preta, o rosto pintado, preto como carvão. Na terça-feira gorda, vestimos o nosso melhor trunfo (havia competição entre os blocos), uma roupa de escrava grega, curtinha, com correntes douradas nos braços e nas pernas, bem ousada para a época e para aquela sociedade provinciana. Foi nesse dia da fantasia de escrava que a minha amiga de folia fugiu com o noivo da médica que eu reencontrava agora, décadas depois. Quer dizer, eu nem cheguei a rever Laurinda, só vi o nome dela na placa de metal presa à porta do consultório. Ela por certo casara com outro, teve filho (o meu médico). A minha amiga do antigo carnaval casou com o ex-noivo dela – depois de passar a noite de núpcias vestida de escrava. Era o costume por lá – fugiu, tem que casar.
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Nunca soube o que acontecera com a noiva preterida até aquele dia, quando vi o nome dela em letras brancas na plaquinha de frio metal azul. Meu coração disparou, parecia que um raio havia me atingido, como se diz nos romances sentimentais. Afinal, aquela história causara um tsunami de comentários na pequena cidade do interior, onde morávamos. Sempre que encontrava alguém de lá, mesmo depois de décadas, ouvia ecos da história do noivo fujão.
Fiquei ali parada, do lado de fora do consultório, atordoada, pois junto com a história do trio, veio o efeito madeleine, esparramando fios de memórias e lembranças esparsas pra dentro de mim. As estórias de amor sempre me comovem, tocam o coração, mesmo as malfadadas.
Por via das dúvidas, amanhã vou marcar hora com o cardiologista.
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foto do gatinho (Tiago Dória), ilustração da mulher dançante (Vânia Medeiros)
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