sábado, 31 de outubro de 2009

o encontro de Joan Crawford e Berlusconi em Santo André da Bahia

Atenta ao ritmo cadenciado dos pingos fortes da chuva e ao cantar álacre do passaredo neste sábado de Vila Molhada, passo os olhos por um ou outro jornal até me deter numa matéria escrita por um colaborador do periódico espanhol El País. Comentava as reações de perplexidade suscitadas fora da Itália com relação à atitude dos italianos em darem respaldo a um primeiro-ministro envolvido em dois processos judiciais e tido como estrela nos tablóides que noticiam escândalos sexuais.

Além do portentoso alcance midiático -- Citizen Berlusconi detém o controle da TV pública e privada da Itália -- o autor ilustra sua análise com fatores culturais, como por exemplo, o que ele chama de "a masculinidade da sociedade italiana", entendida como a predominância de valores que ainda são considerados masculinos: a autoconfiança, uma certa dureza de atitude, a busca desenfreada pelo êxito a qualquer custo -- atributos condizentes com o perfil público do primeiro-ministro e que ganham sustento numa "sociedade de aparências como a italiana."
Liguei o editorial do jornal com o filme de ontem à noite, o centésimo que o Casapraia oferece em fina parceria com o Cinema Cajueiro (houve bolo, comemoração e a presença de uma Crawford latina). Era justamente Johnny Guitar, o clássico filme do gênero western que apontava, já em 1953 para a desestabilização dos papéis tradicionais de gênero. A primeira cena apresenta um caubói -- Johnny, em pessoa -- seu inseparável parceiro chamado cavalo, o desabitado e estático cenário montanhoso e... um violão preso às costas. A mulher que ele procura (e deseja) é Vienna, personagem interpretada por Joan Crawford, a carismática dona (durona) de um cassino frequentado por brutos (eles também amam). Ela é a protagonista, a heroína do filme e vai duelar (literalmente) com outra mulher -- a vilã -- armada de pólvora, ambição e sexualidade reprimida que se vale dos amigos facínoras, a começar pelo xerife. Quem vence é Vienna. Numa completa inversão dos valores ditos masculinos, aqui são os homens que demonstram insegurança e hesitação, enquanto as fêmeas explodem em testosterona.
Berlusconi, te cuida!
Quem sabe Vienna resolve visitar Roma.
-----------
Penso, com alívio, que nenhum italiano que conheço gosta de Berlusconi. Seria como se nós, brasileiros com alguma memória e capacidade analítica, gostássemos do Sarney. Aliás, no momento estou encantada com os presentes cinematográficos recebidos de um italiano que mora em Santo André -- o dono da Pousada Victor Hugo. Ele passou meses, talvez pouco mais de um ano, tentando elaborar sua lista de filmes imperdíveis da história do cinema e deu-se ao trabalho de consegui-los, com a ajuda de um amigo de São Paulo.
O primeiro que vimos -- olha a qualidade do début -- foi A Batalha de Argel, filme dirigido por um italiano, judeu (lindo de morrer), o Pontecorvo, um homem de esquerda ligado ao partido comunista e organizador da resistência anti-fascista em Milão e Gênova. Em 1964 conhece Saadi Yacef, o autor do livro e das memórias de batalhas anticolonialistas que dá título a sua obra prima. Vai então para a Argélia onde, trabalhando com atores não profissionais, faz uma das maiores obras-primas do celulóide de todos os tempos.
Depois de M (O vampiro de Dusseldorf, o primeiro filme sonoro de Fritz Lang) e Que fim levou Baby Jane -- qual será o próximo? -- penso na sorte que é ver cinema bom e achar gente que adora cinema nessa pequena povoação do Sul da Bahia.

Nenhum comentário: